João Correia
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FALANDO DE TUDO E DE NADA
1. Hoje a minha crónica
vai estar desligada de toda a conjuntura. Decidi abstrair-me
de todos os temas da actualidade e mergulhar na consciência
intemporal, longe das tempestades do quotidiano e das mercearias
politiqueiras. Foi uma decisão acertada: se fosse falar
do quotidiano, do dia a dia podia, por exemplo, contar-vos algumas
histórias da minha vida de professor, sem queixume, mas
com um imenso prazer. Teria de vos dizer que, ao contrário
de outros níveis de ensino, os professores elaboram os
seus próprios programas, que não vêm do Ministério.
Ao contrário de outros níveis de ensino, igualmente
respeitáveis, mas com especificidades próprias,
os professores do ensino universitário não têm
livros previamente feitos mas tem de fazê-los ou, pelo
menos, apresentar produção própria que seja
relevante na respectiva área científica. Isso implica
horas e horas de investigação que não são
visíveis aos alunos, até porque, no caso de Letras,
essa investigação não é mensurável
laboratorialmente nem é quantificável à
vista. São horas, muitas, agarrados a textos difíceis,
fascinantes e de grande exigência. Poderia falar-vos do
cansaço que se sente depois, mas só seria honesto
com a minha consciência se vos falasse do prazer que, nalguns
casos, acompanha esse cansaço. Podia falar-vos de que,
ao contrário de outros graus de ensino e de outras profissões,
os professores do ensino superior, nomeadamente do universitário,
dedicam uma imensa parte da sua vida à investigação
porque sem ela não haveria progresso científico
e as universidades passariam a ser colegiozitos e o país
decairia no cinzentismo. Poderia acrescentar a este facto que
os professores do ensino superior, nalguns casos começam
a carreira como estagiários como eu comecei, com grande
orgulho meu.
Se efectivamente quisesse falar desse assunto, teria que recordar
que enquanto dão aulas como estagiários devem investigar
para preparar uma dissertação de mestrado ou de
provas públicas, sem terem um vínculo seguro à
instituição. Ao mesmo tempo, dão aulas,
atendem alunos, e asseguram o cumprimento de serviços
burocráticos sem os quais um Departamento não funciona.
Depois, são assistentes. Mal lhes é dada essa oportunidade
começam a preparar uma segunda tese muito mais exigente
que a primeira. Nos casos das universidades periféricas,
trata-se de uma exigência que nem sempre pode ser compatibilizada
com a atribuição de uma licença completa
seguida. Quando acabam essa tese, acabou a fase de preparação
para a carreira, ou seja começaram a carreira. Então,
são sujeitos à exigência de contribuir para
a comunidade científica nacional, publicando textos, dando
a conhecer as suas investigações, granjeando prestígio
para a Universidade, ao mesmo tempo que continuam a dar as aulas,
a atender alunos e a executar tarefas burocráticas. Se
caso eu pretendesse falar disso e outros pretendessem responder-me,
poderiam retorquir-me: isso é um professor ideal. Se calhar
muitos não cumprem estes passinhos. Eu teria de garantir
com base na minha experiência e na minha observação:
muitos cumprem. E como conheço todos os graus de ensino
- porque passei por todos excepto pelo politécnico, em
circunstâncias muito diversas - poderia falar-vos do elevadíssimo
grau de esforço que todos eles comportam. Porém,
teria de acrescentar : no ensino primário e no ensino
universitário é onde mais se trabalha sem rede.
2. Poderia falar em seguida
da avaliação: medir com sentido de responsabilidade.
Cumprir prazos apertados de preenchimento e entrega das respectivas
notas. Ter de ler centenas de testes com respostas longas e que
não são cruzes num quadradinho. Tentar conciliar
exigência e grandeza de alma. Olhar para um teste e ver
uma cara por detrás desse teste, com um emprego já
conseguido a depender do canudo que resulta daquela hora que
vou dedicar à leitura desse teste. Reconhecer inteligência,
curiosidade e capacidades invulgares num aluno e vê-lo
desperdiçar isso por um milhão da razões
que não me interessam porque devo manter a minha imparcialidade.
Nalguns casos, essas qualidades revelam-se um dia num trabalho
ou num teste: e onde antes tínhamos um aluno quase hostil
que fazia o favor de estar presente numa ou outra das minhas
aulas passaria (isto é que eu vos diria, se falasse nisso)
passaríamos a ter um problema.
Se efectivamente quisesse relatar a minha experiência pessoal
recordaria, talvez, um aluno que parecia estar nas minhas aulas
como mergulhado num sono profundo. Quando lá ia, não
respondia e fazia um "ummm" preguiçoso, olhando
para mim como se eu fosse um ET acabado de aterrar num universo
longínquo, o dele. Recordar-me-ia do dia em que foi instado
a fazer um trabalho oral. Quando entrou na sala, eu já
resmungava para mim mesmo (pois, nós não somos
bruxos nem adivinhos) que o personagem era um caso perdido que
ia contribuir para a sonolência que me estava a invadir
(pois é, a gente também se cansa). E então
o dito cujo começara a falar: poucas vezes tinha ouvido
uma exposição tão clara sobre o assunto
mais difícil da minha disciplina. Apresentada com uma
inteligência desenvolta, sem pedantismos nem falsas erudições:
claro, objectivo, bem preparado. Com uma separação
criteriosa do superficial e do acessório. Fui ver as folhas
que tinha sobre a carteira. Eram meia dúzia de riscos
e de arabescos. Nesses arabescos e rabiscos, ele lia a matéria
toda , correspondendo a um nível de exigência quase
inatacável e acrescentando um tom de originalidade. Depois
fui ver as frequências e as listas de assiduidade. A minha
vontade era esquecer tudo, marimbar-me para s regras de avaliação
aprovadas e discutidas no primeiro dia e reconhecer-lhe a notável
qualidade do seu trabalho invisível , inscrito naqueles
arabescos. E depois, teria que comparar este aluno com outros
que são bons na escrita e menos bons na oral, que revelam
esforço e responsabilidade mas que não têm
a mesma originalidade, cumprindo todos os itens. Eu sei - mas
não digo, até porque não quero falar desse
assunto - a resposta que dei ao problema. Mas se acaso, estivesse
em polémica com alguém teria que dizer: então,
campeões da pedagogia, qual é a vossa resposta?
3. Como tudo isto é
muito complicado, decidi que não falaria de nada disso.
Por isso decidi fazer uma crónica à Ricardo Reis,
o mais sereno dos heterónimos de Pessoa, sem os seus dotes
literários claro. Por isso vou dizer-vos que neste dia
de Primavera, a manhã está linda, dois periquitos
tornam-se uma verdadeira celebração viva da fidelidade
conjugal, o sol está amarelinho, graças a Deus,
a Ribeira saltita entre as pedrinhas e Ofélia olha para
o relógio Rolex e medita com suavidade bucólica:
"O camafeu já está outra vez atrasado."
Nisto ouvem-se passos e o restolho sereno de um arbusto. Ofélia
cai nos braços do camafeu e ouvem-se violinos de uma Orquestra
de Mantovani. A erva está fresquinha e sabe bem pisá-la.
Ar. O ar enche os pulmões e faz-me sentir vivo. Duas rolas,
um saltitão e um estorninho brincam na sua inconsciência
bucólica, como se fossem miúdos à solta
na sua fresca e alegre inocência. Nada acontece de mau.
Tudo está bem e é simples. E eu, feliz, assobio
para o ar, esquecido de tudo. |