Jorge Bacelar
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HAJA ORDEM!
Os príncipes, reis,
imperadores, tiveram os seus dias de glória, de poder
absoluto; eram deuses na terra. Um dia, inventou-se a guilhotina...
Os padres, bispos, papas, inquisidores, tinham um poder de influência
superior ao de muitos monarcas e generais. Depois, apareceu o
Marx...
Os médicos, há
poucas dezenas de anos atrás, andavam às costas
dum jumento, com a malinha na mão, visitando os pacientes.
Os enfermeiros, há pouco mais de três décadas,
eram recrutados entre o pessoal que fazia limpezas nos hospitais
e asilos.
Os professores, na antiguidade, eram escravos com a incumbência
de instruir os filhos dos seus amos.
É sobre a questão
das Ordens que me deu para escrever, desta vez. Sobre a proliferação
de associações de índole corporativa, surgidas
em obscuros conciliábulos de amigalhaços que vêm
depois a público justificar-se e justificar a sua existência
em nome dos seus pares e duma pretensa dignidade profissional
que urge preservar. Este espírito de autodefesa surgiu
na Idade Média, como mecanismo de bloqueio à entrada
de estranhos nos ofícios tradicionais. A transmissão
dos saberes fazia-se de pais para filhos, de mestres para aprendizes,
submissos nas determinações e regulamentos pré-estabelecidos,
controlados e garantidos por um conselho de mestres, aprovados
e abençoados pelo clero e pela aristocracia. Era uma forma
de garantir que "ne sutor ultra crepidam" (não
suba o sapateiro além da chinela) e que tudo se manteria
na santa paz, inalterado, pelos séculos dos séculos.
O que temos hoje, que justifique
a proliferação de Ordens Profissionais? Os tempos
das corporações já lá vão,
não há clero influente (...há, mas é
menos do que antes), a aristocracia reduz-se a contracenar com
os patos-bravos da construção civil e das televisões
nas Lux, Mundo Vip, Caras e outras publicações
de grande dimensão cultural. A certificação
profissional, por definição está nas competências
do Estado, através do Ministério da Educação.
Não conheço nenhum médico com o seu diploma
emitido pela respectiva Ordem; ou advogado, arquitecto, enfermeiro,
veterinário, farmacêutico, engenheiro. Tanto quanto
me consta, todos eles tiveram de passar com maior ou menor dificuldade
pelas salas de aula das escolas, politécnicos e universidades.
Agora, alguns colegas meus, deslumbrados pelo chic de pertencerem
a um conselho de ética e por inerência, ficar na
fotografia com ministros e outra gente fina, querem fabricar
uma Ordem dos Professores.
Porque raio, para se exercer
a profissão para que legalmente se está habilitado,
há que possuir uma credencial emitida por uma organização
constituída à margem do sistema e à qual
se é obrigado a pertencer? Se não forem pagas as
quotas exigidas, pode-se ser impedido de exercer. Primeira questão:
onde está a liberdade de associação? Refaço
a pergunta: onde está a liberdade de NÃO-associação?
Se sou coagido a filiar-me numa seita para poder desempenhar
as minhas competências profissionais, onde está
então a minha liberdade? Segunda questão: a exigência
de pagamento das quotizações sob pena de impedimento
profissional, não se pode considerar extorsão?
Qual será a diferença entre este procedimento e
aquilo que vemos nos filmes de gangsters? Está bem, ninguém
me vai cortar os polegares a sangue-frio nem deitar-me ao fundo
do rio com uns sapatos de cimento, concedo; só me vai
privar de garantir o meu sustento, o meu salário, como
punição por não ter cumprido com as minhas
obrigações pecuniárias. Bolas, já
pago impostos!
Por último, o controle
(profissional e disciplinar) que pretendem exercer sobre os associados
- especialmente entre as Ordens recém-nascidas: a sanha
persecutória é assustadora. Os tribunais, os mecanismos
socialmente criados para regular essas questões, as hierarquias
profissionais dentro das empresas e dos organismos públicos,
tudo isso é ignorado, ultrapassado. Para exercer, cada
vez mais é necessário fazer o exame à ordem
(o diploma académico é reduzido a um mero adereço);
uma queixa por negligência profissional? Para os tribunais,
ainda tem de trazer a assinatura do queixoso; para algumas Ordens,
a denúncia anónima e torpe é o quanto baste
para iniciar o processo de destruição da carreira
e do bom nome de qualquer um dos seus associados.
Pouco falta, por este andar,
para se constituir a Ordem dos Arrumadores de Automóveis.
Também têm direito.
Voltando às meditações
com que iniciei este texto: constituem uma simples sugestão
para meditar. É que aquilo que sobe, cedo ou tarde, acaba
por descer.
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