João Correia
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A Força da Corrente
É uma metáfora
fácil. Mas nem tudo o que é fácil é
simplista:
Senão vejamos:
- A força da corrente
arrastou o autocarro e as viaturas para o fundo do rio. Envolveu
em tragédia uma comunidade e um país.
- A força da corrente
arrastou um dos pilares do Governo. Confrontado com a existência
de responsabilidade objectiva e eventual responsabilidade subjectiva,
Jorge Coelho fez o que tinha de fazer, como deveria ter acontecido
há alguns anos no caso dos hemofílicos. Não
vale a pena dizer que Jorge Coelho aproveitou a oportunidade
para se livrar de um governo fragilizado e relançar a
posteriori a carreira política. Se isso fosse verdade,
o que não sabemos, Coelho teria de cair na mesma a não
ser que, como no caso dos hemofílicos, estivéssemos
perante um governo e um conjunto de governantes que tivessem
gelo nas veias em lugar do sangue.
- A força da corrente
arrastou as nossas certezas. Deixamos de ser o país da
Expo, do centro Cultural de Belém, do Mundial de 2004
para sermos o pequeno país onde campeia a cultura da falta
de rigor e da exigência. Aí estou de acordo com
Pacheco Pereira: não valem de nada os milhões da
UE, enquanto não termos uma cultura de exigência,
de rigor e de responsabilidade. Aí a esquerda, maculada
no seu código genético pelos anos de "é
proibido proibir", quando o excesso atribui uma conotação
negativa à autoridade e à decisão, tem alguma
coisa a aprender com a direita.
- A força da corrente
arrastou o PS. O partido do Governo recebeu a maior chicotada
psicológica a que um Governo e um partido pode ser sujeito
quando se encontram no Poder. O PS teve de enfrentar, dentro
de si, uma alteração dramática da correlação
de forças entre sensibilidades diversas. Foi obrigado
a ser humilde, a assumir um implícito pedido de perdão
que não pagará nunca a dimensão da tragédia.
- A força da corrente
arrastou consigo, o bom senso de algumas figuras políticas.
Carlos Carvalhas e Paulo Portas estiveram sóbrios (o que
é surpreedente no que respeita ao segundo caso), Durão
Barroso esteve menos bem mas à altura das responsabilidades:
criticou o Governo mas soube respeitar o luto nacional. Já
Falcão e Cunha teve a tristeza de sorrir e gabar-se na
Televisão pelo facto de a ponte não ter caído
durante o seu Governo. Falcão e Cunha pode ser um homem
estimável, mas excedeu-se. Uma ponte não cai pela
falta de fiscalização em 5 anos mas por uma falta
de fiscalização continuada ao longo de cinco, dez,
quinze, vinte anos. Finalmente o sorriso e a falta de oportunidade
reveladas constituem um comportamento que se adequa mais à
força predadora das aves de rapina: melhor do que a dos
falcões, a dos abutres. Não pode deixar de ser
uma gafe. Francisco Louçã deixou-se arrastar pela
fúria da corrente e entrou na demagogia furiosa da caça
ao responsável. Chamou "boy" ao Presidente do
Instituto das Estradas, um funcionário que ocupa cargos
congéneres de natureza técnica desde antes do 25
de Abril. António Martins pode, não sei, ter falhado
mas não é um "boy" pois durante anos
houve um reconhecimento unânime em volta da sua competência.
Isabel de Castro dos "Verdes" exigiu responsabilidades
a José Sócrates ao mesmo tempo que dizia que a
responsabilidade do Ministério do Ambiente era ter deixado
de ser responsável pela extracção de areias.
- A força da corrente
arrastou consigo o bom senso de muitos analistas políticos,
que chamaram nomes a torto e a direito aos mais diversos protagonistas
da tragédia. À medida que a força da corrente
diminuía, acalmavam os ânimos e a voz da razão
voltava ao de cima. Como escrevo antes da habitual análise
política de Marcelo Rebelo de Sousa aos Domingos, posso
afirmar que "o Professor" foi o que melhor manteve
a distanciação e a lucidez nas horas a seguir à
tragédia quando a TVI passava no fundo do ecrã
as mensagens incendiárias que denotavam um estado de espírito
compreensível: o de um país em estado de choque.
O Professor Marcelo Rebelo de Sousa compreendeu, com a sua inteligência
invulgar, que quando a força da corrente é alta,
a análise deve dar lugar à compaixão. Quando
a TVI transmitiu na segunda feira a sua análise política,
quando enfim se esperava que intelectual comprometido se comportasse
perante o Governo como uma espécie de patologista que
exibisse com frieza as vísceras ainda quentes de um Governo
esventrado, "o Professor" mostrou-se à altura:
arguto, comedido e compassivo. Excepção , ainda,
foi Miguel Sousa Tavares que, na análise de Terça
Feira, soube apelar ao bom senso na caça ao responsável.
- A força da corrente,
veloz, devoradora, impiedosa arrastou consigo o bom senso e a
moderação de algumas televisões. Entre-Rios
não pode ser o BIG BROTHER III, como alguém escreveu.
Porém, no Domingo, as imagens da TVI alternavam entre
as missas de 7ª dia e o luto dos corpos comas imagens do
noivado do Telmo e da Célia, intercalando-se o directo
e o diferido dos dois acontecimentos, levando a um extremo macabro
um dos riscos que, desde sempre se apontou à informação
televisiva: o nivelamento das situações, a mistura
da tragédia com o Desporto, com os Fait divers e, finalmente,
com as novelas da vida real. Esta situação correu
na mesma semana em que um qualquer energúmeno deu uns
tiros na mulher, raptou a funcionária de um banco e pode
falar em directo ao país, expondo as suas exigências.
Como resposta a Rádio Renascença, logo seguida
por alguns órgãos de comunicação
social de referência , decidiu que não daria voz
nem cobertura mediática excessiva a casos semelhantes.
- O síndroma de "telenovelismo"
que tomou conta do país mostra como a força da
corrente desintegra os valores e corrói a decência.
Em resposta à dramatização do real, expostas
ao reality -show da tragédia transformada em verdade ficcionada
pela Televisão (ou da verdade transformada em ficção),
são muitas centenas as pessoas que acorrem a Entre -Rios
para olhar e ver de frente a morte. Este fenómeno tem
de ser encarado de modo a que esqueçamos relações
simplistas de causa e de efeito entre os media e os públicos.
Os espectáculos de gladiadores e de lutas entre o homem
e o urso, o que se vai sabendo de espectáculos privados
de roleta russa e de combates mortais, o que se conhece sobre
os sites necrófilos residentes na Internet, interpelam
a própria sociedade: só há voyeurismo quando
há voyeurs. Em muitos casos, a exigência ética
que se nos coloca é a seguinte: desviarmos o olhar para
vermos melhor. Se quisermos também podemos dizer: desviarmos
a câmara para melhor mostrar.
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