Nuno Miguel
Augusto
|
O ÚLTIMO CORTE DE ESTRADA
No início do anos 70
e nomeadamente após a revolução democrática
foi emergindo a necessidade de espicaçar as consciências
colectivas, motivando a participação e combatendo
uma apatia estruturalmente imposta. Passada a euforia revolucionária
e institucionalizadas as comissões do mais variado tipo,
o Estado retomou nas suas mãos a tomada de decisão.
Nunca desconsiderando a importância da participação,
pois dela depende a sua legitimação, os diferentes
governos criaram um modelo de participação à
sua própria imagem. A participação carece
de institucionalização, de treino burocrático
de know-how intelectual. Toda a outra se associa mecanicamente
à desorganização típica do PREC.
Procuram-se entre as chamadas acções populares
influências políticas, líderes partidários,
sindicalistas, tudo menos os porquês da motivação
que conduziu ao corte de estradas, aos histéricos gritos
da senhora de negro ou ao boicote eleitoral. O tom alto e severo
que caracteriza o discurso institucional impõe-se. Ainda
assim impõe-se. Os cortes de estradas são ilegais
meus senhores, mas viajar nelas é mortífero. Era
isso mesmo que muitos dos mortos de Castelo de Paiva pretendiam
dizer quando cortaram a estrada em que morreram. A resposta foi
um processo. Quantos processos serão agora necessários
para ressuscitar os mortos e trazer a vida a freguesias inteiras?
Como vêem meus senhores, por muitos aproveitamentos partidários
que se possam constituir em torno destes avisos, eles não
deixam de ser avisos. Para a próxima, meus senhores, em
vez de processos dêem-nos ouvidos pois estamos muito longe
de V. Exas.. Por isso cortamos estradas, para que venha a televisão
que o Sr. Dr. vê lá em casa. Desta vez vieram as
televisões de todo o mundo. Agora, o único processo
que preocupa é o de óbito, nem mesmo o processo
a V. Exas. interessa.
E assim vamos, entre a incapacidade em estruturar a participação
e os bloqueios colocados a esta. Não se pode exigir a
participação da sociedade civil quando se demonstra
uma extrema incapacidade em motivá-la para a participação
ou em ponderar os recursos de participação de que
muitas populações dispõem. O corte de uma
estrada tem, para estas populações, a mesma importância
que um movimento de defesa do mais variado tipo de direitos.
Que recursos alternativos de pressão possuem estas populações?
De que outro modo poderão, já que mais não
seja simbolicamente, intervir nas tomadas de decisão e
reduzir o fosso que os separa da sede centralizada do poder?
Infelizmente, desta vez, os políticos assentaram praça,
finalmente tiveram mesmo que contornar os buracos da estrada.
Desta vez a estrada está barricada por motivos bem diferentes.
Como vê V. Exa. desta vez não temos culpa nenhuma,
não fomos nós. Talvez não fosse deselegante,
então, abrir os devidos processos a quem motivou este
corte de estrada e de vidas.
|