João Correia
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Luto em Raiva
1. Como dizia recentemente
Miguel Sousa Tavares, pensamos que possuímos as coisas
e as pessoas, mas de repente, a ilusão esfuma-se. O vulgar
lugar comum "não há palavras" ganha uma
dimensão diversa quando um cronista é obrigado
a dar sua quota parte de na banalização das palavras
no preciso momento em que as mesmas se limitam a ser um exercício
despudorado de condolências de circunstância. A ponte
de Raiva - Freguesia de Castelo de Paiva - caiu sob um silêncio
estrondoso, atingindo como um relâmpago a quietude dos
nossos sossegos e a mediocridade das nossas certezas. As águas
levam os corpos e as palavras, por arrasto um ministro e a demagogia
de quem se lhe opõe porque sim. A irremediável
tagarelice política soa a oco e só alguns gestos
contam. As únicas verdades possíveis que não
se esboroam na moeda de troca do comércio dos media e
da feira política são as que dizem respeito à
brecha que se abre no interior de cada um quando morre um outro
que lhe é próximo, morrendo assim um pouco de nós
mesmos; são as que dizem respeito às responsabilidades
e à necessidade de apurar eventuais negligências.
São, enfim, os gestos de prevenção de situações
futuras. Para que não se diga apenas, com o ênfase
trágico adequado às perdas irremediáveis:
e tudo as águas levaram. Quando as águas baixarem,
e se descobrir, enfim, que vida continua, há respostas
que têm que ser dadas não apenas por causa de Raiva.
2.De repente, a revista "Pública",
suplemento dominical do jornal "Público" mostra-nos
uma realidade que vai crescendo ao nosso lado, sob o olhar relativamente
complacente e distraído do comum dos portugueses. São
comunidades inteiras provenientes da Ucrânia, da Moldávia,
da Hungria e de miríades de novas Repúblicas de
Leste que emigram macivamente e desaguam na ponta extrema do
Ocidente, em Portugal, vindo a juntar-se às comunidades
africanas pré-existentes. Os números não
enganam. Presentemente, num ranking dos dez países com
mais emigrantes legalizados, surgem, em primeiro lugar, a Ucrânia,
o Brasil, a Moldova e a Roménia. Depois vem o Paquistão,
e só depois os emigrantes dos países provenientes
das ex-colónias portuguesas, misturados mesmo assim, quase
em paridade, com a Rússia e a Índia. Simultaneamente,
aparecem, em número significativo, trabalhadores do Usbequistão,
Bulgária, Azerbeijão, Estónia, Letónia
e Lituânia, etc. Porém as entidades que efectivamente
têm contacto real com este fenómeno migratório
- empreiteiros, fontes diplomáticas e policiais - apontam
para mais de cem mil pessoas. Um dos factores que contribui para
uma relativamente menor visibilidade deste fenómeno é
o facto de uma parte significativa destas pessoas preferir as
aldeias localizadas não muito longe de alguns centros
industriais. Deste modo, é relativamente frequente aldeias
inteiras verem a sua população aumentada em 25%
e mais, como aconteceu recentemente em Valverde, onde os trezentos
habitantes acolheram mais oitenta ucranianos. Na origem, estes
emigrantes têm as profissões mais diversas: enfermeiros,
professores, licenciados em Belas Artes, oceanógrafos,
antigos militares reformados. Quanto ao destino, ele é
relativamente certo: as obras onde dormem, por vezes em contentores
como acontece na construção da auto-estrada do
Algarve. A Igreja tem sido o principal porto de abrigo para muitos
destes emigrantes, facilmente vulneráveis à actividade
de Mafias às quais tem de pagar para arranjarem emprego.
Apesar de as entidades empregadoras revelarem uma opinião
quase sempre favoráveis, não escapam a fenómenos
de sobre-exploração, trabalho precário.
Tudo isto, apesar de a Associação das Indústrias
de Construção Civil e Obras Públicas assegurar
que "precisamos de 750 mil a um milhão de emigrantes
até 2002." A mudança que se faz sentir na
estrutura de qualificação da mão de obra
portuguesa e o baixo desemprego tornam-nos necessários,
nomeadamente para executarem os trabalhos que os outros não
pretendem.
3. Um ex-ministro da Educação
defendeu, recentemente, a fusão do Ministério da
Educação e do Ministério do Emprego. Trata-se
de uma proposta que traz para a liça querelas antigas,
na qual se esconde a ideia de que a formação visa,
especialmente, o mercado de trabalho. Em suma: a utilidade deve
tornar-se o grande fio orientador do conhecimento. Como se não
entende o objectivo praticamente útil da inquirição
fenomenológica sobre o significado do conhecimento nem
se descobre qual o emprego a conferir ao imperativo categórico,
ou a reflexão a empreender sobre os modos distintos de
considerar um bem como o supremo bem da sociedade, restaria no
âmbito dos conhecimentos úteis, a elaboração
de um saber supinamente útil: uma espécie de teoria
geral sobre os modos pelos quais o parafuso encaixa na porca.
Naturalmente que não é esta a intenção
do celebrado entrevistado, eminente engenheiro conhecido pelas
suas profundas preocupações humanistas. Esta teoria,
com a qual discordo, vem decerto envolta em nuances que atenuam
a frieza de algum utilitarismo subjacente à proposta.
Envolta num contexto onde parece descortinar-se um desfasamento
entre as expectativas dos futuros licenciados e as respostas
obtidas no mercado real de emprego, a proposta assemelhar-se
à evidência. Se considerarmos a sociedade como uma
espécie de grande unidade fabril onde os licenciados irão
desempenhar uma tarefa forçosamente útil, ela ganha
quase foro de uma medida desejável. Resta apenas para
apoiar a magnitude desta sapiência que algumas evidências
sejam postas a nu. Ultrapassemos os preconceitos culturalistas,
dirão alguns. Ganhemos tempo e, sobretudo, sejamos pragmáticos:
será que é útil perder demasiado tempo com
conhecimentos de anatomia na formação de um cirurgião?
Será que é útil estar a fazer gastar os
olhos das criancinhas e dos meninos mais maduros com sonetos
de Camões ou de Antero, que não consta que ensinem
nada de útil para se ser carpinteiro ou pedreiro, electricista
ou desenhador de informática? Será racional fazer
desperdiçar o doce langor da juventude com exercícios
matemáticos complexos, quando é sabido que, quando
forem engenheiros, só tem que aprender a assinar os projectos
de muitos desenhadores das câmaras? Será, enfim
que, não se exagera, na lástima colectiva pelos
Budas do Afeganistão? Qual é a sua utilidade? Não
dará a sua explosão pedra para muitas casas afegãs
e emprego para muitas famílias sem posses?
Deixemo-nos de caricaturas: é claro que o ex-ministro
da Educação não quis dizer nem de longe
nem de perto palavras que se aproximem da caricatura de barbárie
utilitarista que aqui quis traçar com grosso lápis.
Porém, a apologia do pragmatismo descai facilmente: primeiro
na apologia da utilidade, depois na celebração
do utilitarismo e, por vezes, no desprezo, por aqueles valores
que teimam, os madeaços!, em resistirem a serem medidos
e quantificados.
Neste caso, no meio termo residirá a virtude. Mas o que
é o meio termo?
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