João Correia
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JORNALISMOS
O país está sondado.
Quase se podia dizer sondomizado, de tal forma a sondagem se
tornou um instrumento penetrante que vasculha os nossos mais
secretos desejos. As almas dos portugueses foram escancaradas
pelos técnicos de audimetria, investigação
empírica e recolha de dados. Através de uma consulta
apressada de uma amostra (pouco representativa) das publicações
portuguesas podemos concluir que os portugueses já responderam,
ao longo do ano transacto, a perguntas tão aliciantes
e diversificadas como esta: pensa que os nossos soldados devem
ficar no Kosovo? Pensa que o Zé Maria vai ganhar o Big
Brother? O que pensa da monarquia? Acha que a Susana devia ir
para a Amazónia? Os touros de Barrancos devem ser mortos
na arena ou no matadouro? Qual é, para si, a profissão
mais credível? Qual é o melhor desportista português
deste século?
Entre as numerosas sondagens a que os portugueses têm respondido
conta-se a que diz respeito à credibilidade das profissões,
onde os jornalistas têm invariavelmente marcado pontos,
com vários primeiros lugares nos sucessivos painéis
sobre o tema.
Tendo sido, em tempos, praticante a tempo inteiro desse sacerdócio
ou desse ofício, e tendo sido recentemente repescado para
reutilizar alguns dos conhecimentos adquiridos nesta matéria,
não posso deixar de me interrogar: o que é um jornalista?
A pergunta não é meramente retórica. Apesar
de não se falar de nenhum animal fabuloso, cujos contornos
fantásticos e comportamentos complexos que exigem investigações
aturadas, a verdade é que a sociologia das profissões,
desde logo com Weber à cabeça, sempre conheceu
no processo de identificação desta profissão
em particular, dificuldades acrescidas. Um engenheiro estuda
engenharia. Um médico estuda medicina. Um advogado estuda
advocacia. O que é que estuda um jornalista? Um médico,
um advogado, um engenheiro são jornalistas quando escrevem
nos jornais?
A pergunta tem mais sentido do que se pensa. Debaixo do mesmo
estatuto profissional já se chamou jornalista a muitas
e variadas coisas e conheci três tipos de jornalistas:
- os antigos jornalistas neuróticos que cultivavam a notícia
feita à base de uma mistura explosiva de cafeína
e de adrenalina. Era um mito e uma verdade. Fazem lembrar um
pouco alguns animais animais fabulosos que nunca existiram do
modo ideal típico que os concebemos mas dos quais à
força de tanto falarmos passaram a existir na nossa memória.
- os jornalistas da transição. Conheciam o saber
da tarimba mas já usavam alguns instrumentos reflexivos
que lhes permitia interrogarem-se sobre o que faziam. Passaram
por uma raivosa crença na luta de classes, no decurso
da qual se interrogaram sobre se haviam de ficar ou não
do lado do povo, mas acabaram por ir ficando do lado do bom senso.
- Finalmente, os jornalistas da nova era. Alguns, pelo menos
alguns, reúnem algumas características:
a) Têm uma tendência exagerada para não terem
a certeza exacta do que é uma notícia, sendo mesmo
de suspeitar que entendem que a fabricação da notícia
é o elemento menos importante do processo jornalístico;
b) percebem imenso de computadores ou, pelo menos, convencem-nos
disso;
c) dedicam-se com afã à gestão e ao tráfico
de informações e acham o máximo fabricarem
bonecos virtuais para apresentarem as suas notícias. Chegamos
assim ao jornalista de plástico, um homus jornalisticus
informatizado e up to date, competitivo e capaz de produzir
conteúdos para as redes. São verdadeiramente "cool".
Descontando-se o mecanismo ideal típico que se esconde
por detrás de cada caricatura parece evidente que algo
do antigo publicista morreu, algures naquela época em
que a imprensa industrial fuzilou a opinião a fim de poder
vender um produto igual a toda a gente. Será que das novas
transformações que as tecnologias informáticas
introduzem vai resultar um novo publicista que pretende recuperar
a Internet como meio para proceder à sintonia da sua agenda
com a agenda das comunidades em que está inserido, como
defende o jornalismo cívico- ou um tecnólogo competente,
de máquina digital a tiracolo, com bits no lugar das ideias,
fascinado pelas suas próteses tecnológicas mas
incapaz de perceber o que elas podem trazer de novo à
maneira como se narra o mundo e se opina sobre ele?
Felizmente, que nesta crónica de duas páginas apenas
se faz um rascunho da evolução das espécies.
Porém, existe uma lacuna em aberto: para além de
suspeitar que ao longo deste processo filogenético se
perdeu alguma coisa, tendo ganho eventualmente outras que ainda
importa ajuizar, ponderar, conhecer continua, mais do que nunca,
por definir a verdadeira identidade desta profissão. Uma
parte desta resposta terá que ser pensada nas Universidades.
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