Nuno Miguel
Augusto
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AQUELES QUE NÃO SÃO
DA CIDADE
As democracias, ainda na sua
fase embrionária, garantiam ao cidadão um direito
fundamental - a participação. Desde cedo, o modelo
democrático surgiu associado a uma dimensão territorial
local que lhe conferi sentido e a dinamizou politicamente. Era
este o chamado "governo da cidade".
Origens etimológicas à parte, a própria
história nos demonstra que a democracia tem uma génese
local. A circunscrição não é apenas
territorial (no sentido físico da territorialidade), mas
igualmente social, pois envolve complexas redes que não
são mais que uma emaranhada teia dos chamados poderes
difusos locais. Até a mais pequena aldeia tem famílias
que não se dão. Ainda assim, as clivagens existentes,
por mais histéricas que se apresentem na praça
pública, não devem ser menosprezadas nem pejorativizadas.
Nas Cidades-Estado, a democracia ganhava recurso, dada a sua
dimensão local, mas carecia também de regras, cujo
controlo social era mais próximo, mais quotidiano, mais
local.
Ainda assim, as democracias das Cidades-Estado não respresentavam
importantes avanços na capacidade de inclusão da
diversidade de clivagens sociais existentes na cidade. Eram claramente
xenófobas, ao excluírem os não cidadãos,
isto é "aqueles que não são da cidade",
como os escravos, ou as mulheres. Ainda que estas clivagens tivessem
interesses próprios bem definidos e possivelmente interessantes,
não contavam na soma (qualitativa e interesseira) do "bem
comum".
Como qualquer sistema social que se preze, a democracia dos excluidores
é, basicamente, uma democracia que facilmente expele detritos
intelectuais, para poder ter diarreias à-vontade. Qual
sistema digestivo, tudo é para expelir, mesmo o cérebro
se por lá passar...
Mais tarde inventou-se a representação e tivemos
que escolher um monte de indivíduos, pois a cidade era
bem maior. Do Presidente da Junta ao Deputado Europeu foi um
saltinho, sem que ninguém se tenha apercebido que estava
em espargata entre Barrancos e Bruxelas. Foi preciso, então,
que todos os cidadãos e cidadãs se juntassem em
torno de interesses comuns para, colectivamente, escolherem quem
representasse o seu ponto de vista.
Muito mais tarde, inventou-se a nomeação daqueles
senhores que nos representam localmente e eis que lá se
foi a representação das clivagens. Agora é,
de facto, a maioria quem defende a minoria poupando-os de inimagináveis
horas de reuniões nas assembleias municipais ou de freguesia.
Tudo isto acontece num sistema eleitoral local fortemente enraizado
na imagem pessoalizada do poder, independentemente dos programas
políticos ou das opções partidárias.
Estas opções são, na modernidade, idênticas
ao casamento - gosta-se e mantém-se; desgosta-se e escolhe-se
outro; desgosta-se e... celibato.
Mas isso da limitação da participação
era dantes. Hoje tem-se a televisão por cabo e a internet
e pode-se vigiar "a casa do Big Brother" de dia e de
noite. O controlo social sobre o exercício do poder resume-se,
na actualidade, à possibilidade em vigiar e decidir sobre
a vida de uma dúzia de pessoas, porque nada tem a ver
connosco e porque são, na sua maioria, quase tão
medíocres como nós. |