João Correia
João Correia

 

 

 

 


CAMARATE E A IMPORTÂNCIA DA OPINIÃO PÚBLICA

 

1. A recente passagem do filme de Luís Filipe Rocha, "Camarate" na sala Unidos do Tortozendo, e o debate que se lhe seguiu com a presnça do realizador do filme, demonstrou que o bom senso está, há muito, arredado da forma como alguns poderes abordaram este assunto em Portugal. Se a hipótese de acidente perdeu credibilidade enquanto a hipótese de atentado foi ganhando consistência, isso deve-se, em primeiro lugar, ao conjunto de pequenos e grande poderes, inabilidades e solidariedades corporativas que se conjugaram em torno da investigação, despertando suspeitas e perplexidades legítimas. Sejamos claros. Parte da direita que detinha o poder em Portugal no ano longínquo de 1980 sabia que lidava com um tema que podia desestabilizar o país e, provavelmente, desencader uma agitação que sobressaltaria o seu próprio poder. Quanto à esquerda, parte dela, provavelmente, receava descobrir esqueletos no armário: se ninguém imagina os dirigentes do PS e do PCP A congeminarem um atentado contra o 1º Ministro da AD, já não será de excluir que parte da esquerda tenha receado o que se podia descobrir, no que respeita ao eventual envolvimento, no caso de atentado, de franjas radicais incontroláveis, movidas por ressentimentos que advinham da ressaca do processo revolucionário. Assim, às inabilidades juntaram os receios e os comodismos. Tentou-se assobiar para o ar e esperar que o tempo sossegasse no seu lugar um processo com cerca de 60 mil páginas de depoimentos contraditórios.
Hoje, a situação mudou radicalmente:muitas das dificuldades que a investigação encontrou foram, sob o ponto de vista político, removido. Mais do que um classe política defensiva, temos uma divisão que ultrapassa a direita e a esquerda : entre os que acreditam no acidente mas aceitam que a investigação deveria ser aprofundada e os que acreditam no atentado e defendem que a investigação prossiga até que seja descoberta uma verdade. Em face desta maioria que se projecta numa certa razoabilidade o filme defende "Camarate": porossiga-se a investição. Camarate é um nó cego da nossa história recente.. Nos Estados Unidos, a história escreve-se no cinema,quase em cina da actualidade: Vitename, JFK, Golfo e até os affairs da Casa Branca passam logo para o celulóide. Se isto é muitas vezes, objecto de algum exagero demagógico, penso que este tipo de atitude favorece a capacidade de reflectir sobre a própria história, evitando teses unilaterais e visões dicotómicas, se bem que, muitas vezes, à custa da multiplicação de ridículas teorias da conspiração.

2 . Finalmente, "Camarate" é um filme industrial num país que não têm indústria cinematográfica. Luís Filipe Rocha, realizador do filme queixa-se da censura de gosto, na medida em que, ao que parece, foi afastado dos subsídios por um júrí que prefere cinema de Arte e de ensaio. Sendo uma admirador do dito "cinema de arte e de ensaio" - embora desconfiado de todas as catalogações do género- e tendo como referência recente um cineasta chamado Angelopoulos que é, por sua vez, uma coqueluche do intelectual que presidiu ao jurí que algadamente, censurou "Camarate" por ser comercial-, não tenho dúvidas em ter na minha preferência cinéfila uma enormíssima quantidade de obras que foram catalogados na sua origem como produtos industriais, aguns dos quais de baixa qualidade. É difícil considerar as obras de John Ford, Hitchcock, Wells, Michael Curtiz Douglas Sirk,. Minneli, Copolla como puro cinema de arte e ensaio, no sentido em que contenham infindáveis monológos proferidos por personagens paralíticos no decurso de planos estáticos com a duração de quimze minutos. Porém, são arte superior como Bergman, Visconti, Kurosawa, Angelopoulos e algum Godard, também são. Por isso, agradeço que, um dia me expliquem esta dicotomia misteriosa. Será que os filmes de Chaplin conseguiriam o subsídio do secretariado nacional de apreciação do gosto?

3. Mário Mesquita, um dos mais destacados e artgutos investigadores de jornalismo em Portugal, escreveu um texto essencial no " PÚBLICO" de Domingo onde relaciona a defesa do jornalismo cívico com a tendência comunitarista que assolou a Filosofia Política nos últimos anos. Nessa medida, a ambição manifestada pelos defensores do jornalismo público e do jornalismo cívico em sintonizarem a agenda dos media com a agenda de temas substantivos que preocupam a comunidade seria uma forma de revitalizar um certo conceito de vida solidária, apreciada por filósofos como Walter, para quem o individualismo e a fragmentação social e cultural contirbuiram para a erosão dos laços sociais e da participação na cidadania. Esta forma de abordar o problema, hoje tão apreciada numa importante corrente da teoria política, correria, para Mário Mesquita, o risco de pôr em causa a liberdade do indivíduo graças à enfatização da ideia de "nós". Simultaneamente, serviria para enfatizar a fragmentação social, uma vez que os indivíduos teriam tendência para se aproximarem, sobretudo, daqueles com quem partilhariam valores culturais comuns.
A análise de Mário Mesquita é, como dificilmente podia deixar de ser, arguta e merecedora de grande atenção. O jornalismo cívico corre o risco objectivo de poder ser uma espécie de amplificador dos poderes anacrónicos que sobrevivem em muitas comunidades, onde sobrevivenm formas pré-modernas de integração. Porém, como defendi em vários locais, o jornalismo próximo das comunidades pode constiuir a introdução de uma factor introdutório do pluralismo, da reflexividade e do cosmopolitismo, desde que a sua intervenção sirva para catalizar o debate colectivo.
Nessa medida, regressemos ao URBI: sem cair na utopia interactiva como panaceia de todos os males, acredito que as redes são uma oportunidade reconciliar comunidade e espaço público, cosmopolitismo e particularismo. Ou seja ligarmo-nos à nossa terra e ao mundo.

 

4. Portugal é "uma sociedade multicultural, multiétnica e multirracial". A afirmação não provém de nenhum dirigente do Bloco de Esquerda, mas de Marcelo Rebelo de Sousa. É a primeira vez que um político no activo admite aquela que é a principal transformação social das últimas décadas: deixamos de ser um país de emigração para passar a ser um país de imigração, goste-se ou não da ideia. O facto de uma personalidade pública no activo assunir essa ideia chama a atenção para um desafio que se limita a conferir urgência acrescida aquele que é uma das angústias principais da modernidade: como é que se concilia o particular com o universal? Se o tema cheira a Hegel, e a Durkheim, e outros ilustres personagens da história das ideias, ele tem uma tradição prática mais simples e de maior impacto quotidiano: vamos aceittar a guerra civil nas cidades, com facas nas escolas e nos autocarros, ou tentamos encontrar formas de ultrapassar os guetos que já abundam na sociedade portuguesa? Este é um tema que vai marcar a década que agora começa.

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