ROSTO (1)
Edmundo Cordeiro
Primeira parte do texto "O
Rosto", de Giorgio Agamben, MOYENS SANS FINS - NOTES SUR
LA POLITIQUE, Bibliothèque Rivages, Paris, 1995 [pp.103-112].
Tradução de Edmundo Cordeiro e António Bento:
"Todos os seres vivos
estão no que é aberto, manifestam-se e resplendecem
na sua aparência. Mas só o homem quer apropriar-se
dessa abertura, quer captar a sua própria aparência,
o seu próprio ser manifesto. A linguagem é essa
apropriação que transforma a natureza em rosto.
Por isso a aparência se torna um problema para o homem,
o lugar de um combate pela verdade.
O rosto é o estado de
exposição irremediável do homem e, ao mesmo
tempo, precisamente nessa abertura, a sua dissimulação.
E o rosto é o único lugar da comunidade, a única
cidade possível. Pois o que em cada um o abre ao político
é a tragi-comédia da verdade em que perpetuamente
cai e de onde deve reerguer-se.
O que o rosto expõe
e revela não é qualquer coisa que possa ser formulada
nesta ou naquela proposição dotada de sentido e
também não é um segredo destinado a permanecer
para sempre incomunicável. A revelação do
rosto é revelação da própria linguagem.
Por consequência, a revelação não
tem nenhum conteúdo real, não diz a verdade sobre
este ou aquele aspecto do homem ou do mundo: ela não é
outra coisa senão abertura, não é outra
coisa senão comunicabilidade. Caminhar para a luz do rosto
significa ser essa abertura, sustentá-la.
Por isso o rosto é,
antes de mais nada, paixão da revelação,
paixão da linguagem. A natureza ganha um rosto quando
se sente revelada pela linguagem. E, no rosto, o facto de ser
exposta e traída pela palavra, de se ocultar na impossibilidade
de ter um segredo, aflora como castidade ou perturbação,
atrevimento ou pudor.
O rosto não coincide
com a face. Sempre que qualquer coisa chegue a estar exposta
e procure captar o seu próprio ser exposto, sempre que
um ser surja sombrio na aparência e deva libertar-se disso,
há um rosto. (Por isso a arte pode até dar um rosto
a um objecto inanimado, a uma natureza morta; e por isso as feiticeiras,
que os inquisidores acusavam de beijar o ânus de Satanás
na altura do sabbat, respondiam que também aí havia
um rosto. E hoje é possível que toda a terra, transformada
em deserto pela vontade cega dos homens, se torne num único
rosto.)
Olho alguém nos olhos: baixam-se - é o pudor, isto
é, o pudor do vazio que está atrás do olhar
- ou então fixam-me. E podem olhar-me com atrevimento,
exibindo o seu vazio, como se, atrás, houvesse um outro
olho abissal que conhece esse vazio e dele se serve como de um
esconderijo impenetrável; ou então com uma impudência
casta e sem reservas, deixando passar, no vazio dos nossos olhares,
amor e palavra.
A exposição é
o lugar da política. Se não existe, talvez, política
animal, é unicamente porque os animais, que vivem sempre
no que é aberto, não procuram apropriar-se da sua
exposição e permanecem simplesmente nela sem fazer
caso disso. É por isso que não se interessam pelos
espelhos, pela imagem enquanto imagem. O homem, em contrapartida,
ao querer reconhecer-se - apropriar-se da sua própria
aparência - , separa as imagens das coisas, dá-lhes
um nome. É assim que ele transforma o que é aberto
num mundo, no campo de uma luta política sem tréguas.
Esta luta, cujo objecto é a verdade, chama-se História.
Nas fotografias pornográficas,
é cada vez mais comum que os sujeitos representados, por
intermédio de um calculado estratagema, olhem para a objectiva,
ostentando a sua consciência de estarem expostos ao olhar.
Este gesto inesperado desmente violentamente a ilusão
que está implícita no consumo de tais imagens,
segundo a qual aquele que as olha surpreende os actores sem ser
visto: os actores, provocando conscientemente o olhar, obrigam
o voyeur a olhá-los nos olhos. Nesse instante, o carácter
não substancial do rosto humano dá-se bruscamente
a ver. O facto de os actores olharem para a objectiva significa
que dão a ver que estão simulando; e apesar disso,
paradoxalmente, na justa medida em que denunciam a falsificação,
aparecem mais verdadeiros. O mesmo procedimento é hoje
adoptado pela publicidade: a imagem aparece mais convincente
se ostentar abertamente a sua própria ilusão. Nos
dois casos, aquele que olha, choca, sem o querer, com qualquer
coisa que inequivocamente diz respeito à essência
do rosto, à própria estrutura da verdade. (
)"
[CONTINUA]
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