João Correia
João Correia

 

 

 

 


UM TÍTULO GRANDE DE MAIS

Para sermos justos e para que houvesse concordância entre o nome e o nomeado, este artigo deveria ter um título grande, já que fala de muitas coisas diversas . Provavelmente, à semelhança dos títulos de alguns romances do Século XVIII ou até de Verne e Dickens deveria chamar-se assim: "De como este herói passou o fim do milénio, leu um artigo de Pacheco Pereira e cuidou de se inspirar para escrever para o Urbi." Como o jornalismo é um género castrador, de frases curtas e títulos atirados à cara do leitor, não tive outro remédio senão minorar o rolambório e deixar um título vago, mas curtinho, deixando para subtítulos as pistas que permitam desvendar o enigma de um pensamento tão comprido, obtuso e paradoxal.
Para grande arrelia de certos fenomenólogos, nunca gostei da simplicidade. O meu género é o barroco, o meu filósofo favorito é Adorno, e o meu romancista de eleição é William Fawlkner, que tinha uma escrita de tal maneira construída sobre um caos emocional, que ainda há quem pense que ele escrevia sobre o racismo no Sul, quando, na verdade, empilhava palavras sobre a decadência, o mal, a tristeza e a impossibilidade de ser feliz, sem quaisquer espécie de devaneios militantes à la Erskine Caldwell ou à la Hemingway. Porém, regressemos às próprias coisas.

1. Passei ao lado século. Porque é que passei ao lado século? Quando entrei na carruagem do tempo o século já há sessenta anos que desfilava nos carris, pelo que atrás de si remavam sentimentos nostálgicos sobre a resistência francesa, cinema negro americano, o existencialismo do Pós-Guerra, Saint Germain Le Prés, as tertúlias do Quartier Latin. Como só tinha oito anos quando Danny le Rouge descobriu a areia da praia por detrás das pedras da calçada, já estava condenado a que as imagens de Nanterre chegassem à estação onde eu esperava envoltas no fumo do passado. Estava também condenado a chegar aos treze anos, em 74, a este país de costumes serenos, bucólicos, paradisíacos e amornado pelo sol das praias temperadas, sem me aperceber que o presente que então invadiu este país era já passado noutros lugares da Terra e desta Europa ideológica com a qual comungava o fim de festa. Por isso, sou de um século em que muitos ficaram a meio, cheios de sentimentos confusos sobre o que nos atraía e repelia, as causas e as desilusões, as utopias e as veredas estreitas do realismo. Ainda me recordo de falar da mudança de século como de um lugar distante se tratasse. Nessa altura terás 39 anos, eu já cá não estou para ver, etc. O dia chegou e não se pode dizer que tivesse sentido um baque especial por esta coincidência entre o fim do século e a chegada à minha idade medieval. Descobri o século tarde, cheguei à estação quando ele passava apressado e já perdia gás. Mas o que me ficou da sua visão fugaz traçou uma linha que eu não consigo atravessar. Sou, por isso, ainda, um homem do século XX e das suas ilusões.

2. José Pacheco Pereira escreveu um dos melhores artigos sobre o Big Brother de que há memória. O Big Brother (Big Brreda, como diz a Teresa Guilherme) deu origem a um género literário: o criticismo bigbradológico. Clamou-se pela moral e pelo bom gosto e reclamou-se mesmo a presença dos bombeiros para apagar a fogueira do mau gosto incendiário que encheu de vastas labaredas o écrã berrante da TVI. Só faltou pensar sobre o assunto, o que implicava ser capaz de ver e olhar o programa de vez em quando, contemplar aqueles seres de pijama, vagamente rudes e incultos que deambulavam entre a atracção fixa pelas galinhas (les beaux esprits se rancontrent) e a prática saltitante desse género maior das artes marciais que dá pelo nome de kick box e que se traduz na prática simultânea do murro e do pontapé.
Como eu sou um fulano do século XX, herdeiro de uma tradição iluminista que teima em se não apagar apesar dos encontrões que levou, acho o Big Brreda uma coisa vil, sofisticadamente vil, desejoso de nivelar os sentimentos e os pensamentos por um nível que não ultrapasse em altitude as camadas inferiores do lodo. Só que afirmar esta apreciação como um ponto de partida deixa-me na mesma. De quem é a culpa? Quem vigia quem? Qual foi papel dos jornalistas que deram honras de primeira página ao objecto, como se fosse este o protagonista maior da actualidade? Qual é a culpa dos psicólogos que participaram no BigBrreda, sabendo de antemão que o condicionamento de pessoas ao confinamento de um edifício onde não chegam informações exteriores de espécie alguma, só pode dar um resultado parecido com aquele que se obteve? Quais foram os critérios de selecção dos residentes da casa: a boçalidade, o grau de aquecimento hormonal, a liderança absoluta na capacidade de contar anedotas rascas, a pior ausência de gosto na escolha do pijama? Ou pelo contrário, a finura de trato, a elevação de sentimentos, a cultura refinada e a educação esmerada? Que género de contratos amarrou os concorrentes à estação de televisão? Como é possível um fenómeno desta natureza não tinha sido investigado por outros jornalistas que queriam saber destas e doutras respostas a estas perguntas?

3. Nesta ocasião, algum intelectual integrado já olhou de soslaio para a minha argumentação e dirá: como você sabe tanto sobre o Big Brother... E como o pormenor do pijama é revelador, facilmente terá deduzido que olhei duas ou três vezes para a coisa, com a curiosidade de quem olha com pijamas para as flores e a beatitude de quem contempla a relação profunda do homo barraquensis com o galináceo. A cocupiscência do olhar traiu-me. Porém, não faço mea culpa. Nesta era pós moderna tudo nos pode acontecer: já dei por mim com um cachecol do Sporting. Já vi filmes do Schwarzenegger. Vi o Speed 2- o Jorge Bacelar estava atrás de mim e riu sem vergonha, quase tanto como eu. Folheie a "Maria" no consultório do dentista. Comprei uma camisola do Figo em Benidorme. Leio livros do Stephen King. Vi um episódio dos Jardins Proibidos.
Porém, a minha condição de iluminista retardado, filho de um século que finda, não me permite fazer muito mais do que isto. O que já posso fazer - e é esse o preço pago pelo presente de que sou feito - é continuar a exigir que um dia haja níveis de cultura suficientemente democratizados para que as pessoas possam escolher entre o Speed 2 e o Bergman. Pieguices,dirão alguns. Heranças do século XX.

4. Por último, gostaria de arranjar um pretexto para me referir às obras do Pelourinho. Cada vez que não falo das obras do Pelourinho, da graciosidade das crateras, das novas perspectivas abertas aos automobilistas, do fulgor pós-moderno que emana daquele monumento, fico com a sensação de que não cumpro o dever cívico de tecer loas à obra grandiosa que desafia a imaginação humana. Felizmente, o andamento das ditas dispensa-me de comentários. Entramos no século XXI, com a cidade esventrada. Só por isso ninguém esquecerá esta transição de século. Aproveito para isso para fazer uma previsão, aproveitando um pouco a tendência da época para a feitura de horóscopos: daqui por seis meses, já ninguém se lembra do Zé Maria mas o buraco ainda lá estará. Falando a sério, oxalá me engane.

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