Anabela Gradim
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Primeiro estranha-se
A criancinha segurou na bolacha
escura e recheada com incontida gula e iniciou, metódica,
o processo de deglutição. Que não é
simples. Exige técnica. Uma mãozinha papuda agarrada
a cada uma das metades, e rodar, uma no sentido dos ponteiros
do relógio, outra contra, até que as bolachas se
desprendem deixando o recheio à vista. Take 2: linguita
cor-de-rosa cá fora, e toca a lamber o dito creme, justa
recompensa do esforço da complicadíssima operação.
Take 3: a mãe assiste muda e horrorizada à cena,
aqui visionada em câmara lenta, fotograma a fotograma,
mas que na verdade se desenrola em pouquíssimos segundos
num local público. Repreende-a severamente pela falta
de maneiras, e não fosse tão público o local,
ter-lhe-ia certamente sacudido o pó da moleirinha. A criança
pára imediatamente, e não por obediência,
mas por pura estupefacção. Quatro anitos mudos
e estupefactos, a tentar perceber exactamente o que se estava
a passar. E o que se estava a passar é que ela se limitara
a assimilar, aliás muito eficientemente, o comportamento
que a publicidade televisiva a um doce congénere alardeia,
rodeado de imagens muitíssimo positivas. E palavra que
é bem bonito o spot. Uma dezena de crianças "étnicas"
(world babies?), negras, indianas, asiáticas, caucasianas,
mestiças, todas lindas de morrer, género beautiful
people sub-10, abrem cheias de perícia uma bolacha recheada
ao meio e lambem o creme, quando não decidem ensopá-lo
em leite antes de deglutir. O jingle que acompanha as imagens
é hipnótico e beatífico, e o texto reiterado
pela voz-off - se não me falha a memória devido
à componente hipnótica e beatífica - fala
em "milagre" e "partilha". A mãe não
percebeu porque é que a criancinha a embaraçou
em público. Nem a criança, muito menos, porque
não deveria ter feito o que fez.
Um outro anúncio, também com pré-adolescentes
como público alvo, propugna, tanto quanto à minha
limitadíssima capacidade de perceber e interpretar imagens
modernaças é dado ver, o seguinte: há uma
promoção tipo leve 2 pague 1 na loja em frente,
a criança que o casting quis bem alimentada e com cara
de anjo travesso deseja ardentemente a promoção,
conta os trocos que tem no bolso, e conclui que lhe faltam umas
poucas moedas para realizar a compra. Como, sabe-se lá
por alma de quem, este sub-13 deambula sozinho na rua, não
tem, de facto, muitas alternativas sobre quem cravar os tostões
que faltam. Mas eis que vislumbra um mimo, daqueles que na rua
fazem de estátuas horas a fio, com a caixa das moedas
já bem abonada. E faz-se luz naquele espírito.
Toca de servir-se das moedas e regalar-se com o dois em um, ante
a impotência do mimo, que, tecnicamente assaltado, não
foi ouvido nem achado, não consentiu, mas até parece
achar graça a tanto engenho e arte assim justamente recompensados.
O spot termina aqui. Mas por que não ir mais longe? Por
que não ceguinhos que pedem esmola? O porta-moedas da
mãe? O auto-rádio do vizinho?
São já antigos estes dois anúncios de produtos
dirigidos a crianças, e se os evoco é porque Dezembro,
na febre das compras e prendas de Natal, é uma altura
especialmente crítica para tais públicos, bombardeados
com mensagens muitas vezes contraditórias. Vale a pena
perder umas horas ao sábado de manhã a investigar
o que a Concentra e a Matel e todos os outros fabricantes, com
os seus exércitos de barbies e pokémons, e action-men,
e pinipons, têm para oferecer às crianças.
E não só o conteúdo. Mas de que forma entram
em nossas casas e lhes colonizam os sonhos.
Bolachas e boas maneiras? Ética e fast-food? Detalhes,
dirão. Pormenores. Caturrices de tia velha. Mas é
assim, sub-repticiamente, que se fazem hoje as revoluções
e se entranham paradigmas.
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