João Correia
João Correia

 

 

 

 


A GRANDE DOR DE CABEÇA

Se não fosse o mês de Dezembro, o Inverno seria uma psicose universal. Entre a saída das férias e a dor de reeencontrar a mesma casa, a mesma torneira que pinga, os mesmos móveis que há quase uma década prometemos remodelar e a chegada do Maio, maduro Maio, morno e travesso, amigo da saída e da conversa na varanda, só restaria uma imensa estrada deserta, cheia de nevoeiro espesso, de programas de televisão com os horários trocados, de frio e de desolação soturnos e melancólicos. Entre Outubro e Maio só sobrariam alguns relampejos de entre as sombras. Um quotidiano feito de sensaboria, melancólico negrume e dores existenciais encheria cada minuto da nossa existência, pontuada por pequenas agitações alimentadas pelos media. Umas eleições presidenciais sem alma nem frissom, com resultados previsíveis divididas entre um Presidente afectuoso e irritadiço e um candidato excitadíssmo na denúncia, cheio de electricidade e frenesim, vermelhusco e hiperactivo, desejoso de arrebanhar a saborosa vitória de alcançar uma percentagem superior aos trinta por cento. As irritações do edil covilhanense com os media, a Associação de Municípios, a conspiração dos sociolólogos, a conspiração dos analistas políticos e a Universidade, pontuadas por moções de apoio enviadas aos jornais locais sobre a forma de cartas do leitor. As obras do Pelourinho e as enormes filas de automóveis com as quais nos lançamos no pelotão da frente dos incómodos da modernidade. Os arrufos que transformam a oposição numa espécie de casa comum da discórdia. Os votos grávidos de Miami-Dade e da América Profunda, dividida entre um filho de família com um olhar de idiota e um pedante sem chama nem paixão. Toda esta pequena chuva de acontecimentos estúpidos cai numa espécie de modorra melancólica, fustigando a nossa inteligência e transformando a nossa paciência numa papa.
Porém, vem Dezembro e durante quinze dias sonhamos com a felicidade. Os arrufos de Ferreira do Amaral e de Sampaio, os ímpetos do edil, o caos no trânsito, a luta pela Florida e a guerra da Assembleia Municipal desfazem-se como folhas de Outono arrastadas pela Chuva. Todos os anos vem o Natal. Há sempre duas hipóteses para falar do Natal: ou qualificamo-lo como uma época hiperconsumista em que caímos no pecado de uma felicidade gorda, gulosa e egoísta alimentada a poder de cartão de crédito, lambuzados em chocolate e molho de perú ou caímos na cantilena da Boa Vontade, da solidariedade e da Esperança, sem vermos as luzes de néon que decoram as àrvores ao som do Jingle Bells e de anúncios da Coca-Cola.
Em tudo isso, há mistérios mais profundos que a razão está impossibilitada de julgar com os olhos enxutos: há habitos de consumo que se tornaram tradições e tradições que se plastificaram a fim de poderem ser adquiridas e consumidas no paraíso universal do mercado. Há uma insdústria natalícia. Há um comércio da emoção e um marketing da solidaridade: nele se misturam coisas falsas e verdadeiras como sejam as folhas de azevinho, as pinhas e os pinheiros, o musgo, as figuras kitsch de barro ou de bisquique, os fatos do Pai Natal com as cores da famosa bebida, as estrelas de plástico e as bolas de cores, os cavalos de pau, os presépios, as filhós e as prendas. Os hipermercados engalanam-se com uma misticismo feérico e toda a gente dança ao som de Bing Crosby, Frank Sinatra e Nat King Cole. As televisões passam até à exaustão versões cada vez mais sofisticadas do "Cântico de Natal" de Charles Dikens (por sinal, um belíssimo conto para ser lido fora de todas as suas adaptações lacrimosas) e acendem-se estrelas nos cantos dos móveis. Jean Baudrillard escreveu a sua "Sociedade de Consumo" fora do Natal e captou uma parte importante do significado antropológico dos novos registos de consumo. Válidos para a sociedade que se consolidou no pós-guerra, só ganharam significado para nós a partir de 1985, quando Portugal conheceu a sua transformação estrutural mais profunda a seguir à conquista das liberdades democráticas: o acesso à sociedade de consumo. Falta-nos uma obra semelhante que nos fale do Natal, e dessa transformação admirável que significa a passagem da loja de brinquedos de pau ao hiper e do madeiro ao pinheiro de plástico.
Os quinze dias ou três semanas que duram a quadra do Natal são um esforço patético de esconjurar a porcaria da vida, recuperar alguma da inocência e da verdade das relações humanas tal como imaginamos que elas teriam sido num tempo longínquo que identificamos com a nossa infância. São um esforço frustado e revestido de um sentido trágico. Em primeiro lugar é sincero, porque apesar das múltiplas ilusões com que se envolve, significa uma aspiração genuína das pessoas. Em segundo lugar, é inútil porque pactua com todas as coisas que negam a autenticidade do Natal, transformando-o de certo modo no seu contrário. Neste esforço vão de readquirir o tempo e a inocência, quase imitamos o sorriso original. E apesar da consciência desagradável da ilusão, reincidimos.

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