João Correia
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ENCRUZILHADAS
1. A semana passada foi marcada
pelo Seminário sobre Ensino Superior e as declarações
do Engº Belmiro Azevedo sobre a relação entre
as Universidades e o Mercado. Na visão daquele empresário,
seria a realidade económica e a capacidade de absorção
do mercado de emprego que deveriam ditar a escolha dos cursos,
os saberes que deveriam conter e a preparação dos
futuros licenciados. Como, normalmente, estas coisas nunca surgem
isoladas, o eventual candidato a Bastonário da Ordem dos
Advogados, José Miguel Júdice, proferiu declarações
muito críticas sobre a abertura de novas faculdades de
Direito e o anquilosamento das existentes. Cito de memória:
alguns professores teriam um prazer quase erótico em debitarem
saberes herméticos sem qualquer aplicabilidade prática.
2. Numa conjuntura marcada pela recessão demográfica,
pela diminuição da procura do ensino superior,
de ameaça de falência ou de encerramento de cursos
por parte de Universidades Privadas que até se revelavam
demasiadamente sintonizadas com o mercado é de esperar
que muitas outras declarações do género
se multipliquem.
Há cerca de trinta anos, um curso assegurava a entrada
imediata no mercado de emprego e o alcance do ansiado Estatuto
de Doutor. Seguiu-se durante a vigência do Engº Roberto
Carneiro como ministro da Educação, a euforia da
democratização do ensino superior, com todas as
suas virtudes e inevitáveis erros. Uma parte significativa
das novas classes urbanas em ascensão descobriram que
os filhos podiam ser o que eles não tinham tido oportunidade
de ser: licenciados, ou melhor, doutores. Na altura, muitos foram
os governantes e estudiosos que alertaram que o futuro seria
menos promissor e radioso do que o que os novos estudantes preconizavam.
Porém, nas épocas de euforia, não adianta
tentar despertar a racionalidade dos intervenientes. Quando a
economia portuguesa estava em frança expansão,
o petróleo estava barato e o Banco Central Europeu continuava
a anunciar baixas nas taxas de juros ao crédito, era inútil
dizer aos endividados compradores de casas que, um dia, a situação
se viria alterar. Eles não ouviam. Da mesma forma, os
recém chegados ao ensino superior não acreditavam
que o futuro não fosse dos novos doutores.
Lentamente, a festa foi terminando e a dura realidade começa
a aparecer aos nossos olhos. Há uma vaga imensa de licenciados
que vão para o desemprego ou não obtém o
acesso a carreiras de acordo com as habilitações
que possuem.
Qual deverá ser o papel da Universidade dos dias de hoje?
A resposta aos olhos de um Empresário como o Engº
Belmiro de Azevedo é de uma simplicidade quase desarmante.
Deve-se adequar a Universidade ao mercado e adoptar um caminho
profissionalizante de onde sejam banidos os saberes herméticos
ensinados com prazer erótico a que se refere José
Miguel Júdice.
Ora, eu penso que a questão é capaz de ser mais
complexa.
3. Habituado como estou aos combates entre teoria e prática,
tantas vezes despertos pelos meus alunos, a questão parece
adquirir contornos óbvios aos olhos de alguns. Dever-se-ão
banir alguns saberes teóricos e adequar os cursos à
experiência viva das empresas. O licenciado ideal seria
sempre um técnico capaz de desafiar as rudes questões
da empiria. Tudo o resto seria bafio.
Deixemos de lado o "detalhe" que constitui o facto
de uma concepção deste género ter implícita,
no limite, a apologia de um certo retrocesso civilizacional.
Há outras dificuldades que advêm deste desenho do
papel da Universidade que merecem ser pensadas:
Desde logo, em primeiro lugar, as realidades mutáveis
e aceleradas da nova economia baseadas em incertezas múltiplas
e em possibilidades ainda escassamente testadas não são
critério seguro para a tal adequação da
Universidade à Empresa. Se se apostasse apenas num saber
meramente profissionalizante, corria-se o risco de ficar dependente
de modas e de conjunturas altamente voláteis e fugazes
que, uma vez superadas, deixam atrás de si, uma nova vaga
de desemprego. A experiência de muitos países já
demonstrou que as declarações de responsáveis
políticos e económicos com os olhos postos no curto
prazo deram origem à fuga e à queda em desuso de
cursos e de profissões de que hoje existe um défice
importante.
Em segundo lugar, é duvidoso que numa economia altamente
competitiva, e que efectivamente aposte na qualidade, as empresas
queiram que um gestor ou um economista seja um contabilista diplomado;
um engenheiro se reduza a uma espécie de super-operário
especializado; ou um sociólogo, um intérprete de
entrevistas e de inquéritos. A escolha de quadros capazes
de ocuparem níveis de decisão cada vez mais elevados
exige fórmulas muito mais subtis e avançadas de
combinação de conhecimentos. Uma das mais recentes
"coqueluche" do Ensino Superior na Alemanha é
uma pós Graduação altamente selectiva, em
Economia e Filosofia destinada a preparar decisores de quadros
de grandes empresas. A filosofia subjacente é a de que
os decisores não se podem resumir a ser meros intérpretes
de números mas têm que ser capaz de reflectir criticamente
para compreenderem algumas das dinâmicas com que terão
de se confrontar. Na mesma linha, há cerca de dois anos
assisti a uma Conferência sobre o ensino nos Estados Unidos,
dada por Onésimo de Almeida, escritor e professor na Universidade
de Brown, onde se deu a conhecer o facto de que muitos futuros
arquitectos ou advogados frequentam disciplinas de Literatura
Grega e Latina, História de Arte.
Finalmente, a noção de que o ensino superior deve
ser um ensino profissionalizante de nível mais sofisticado
pode ter em pouca conta a capacidade de inovação
para enfatizar, pelo contrário, o desempenho mecânico
de tarefas pré-estabelecidas.
4.Uma vez que a resposta aos problemas que existem colocados
pelos empresários nunca poderá ser um regresso
a um certo isolacionismo coimbrão centrado na excelência
do saber produzido na torre de marfim, importa descobrir soluções
originais com os pés bem assntes na terra.
Como grandes princípios, julgo na minha modesta opinião,
como mais adequados, os seguintes:
a) a Universidade tem que estar virada para a vida prática.
Tem que incluir um olhar despreconceituoso sobre os novos saberes,
os novos desafios e as novas realidades. Não deve estar
numa torre de marfim à espera que o tempo lhe diga que
está anquilosada e sem préstimo.
b) O olhar da Universidade para a vida prática não
pode perder a sua especificidade. Não pode perder a sua
componente reflexiva . Tem que ser um olhar universitário
mas que tenha a humildade de reconhecer que tudo quanto diga
respeito ao humano não lhe é estranho.
5. Ao longo da minha vida de
docente, assisti, de perto, ao trabalho levado a efeito nas Ciências
da Comunicação onde se reflectiram alguns dos dilemas
que tracei neste artigo. Mais prática? Mais teoria? Mais
Filosofia? Mais Informática? Mais Marketing? Mais Teoria
Política? Depois de criada uma forte componente teórica,
foram-se consolidando ateliers e actividades como o URBI e a
TUBI profundamente abertas à vida prática. Depois
lançou-se o Curso de Design Multimédia, como forma
estratégica de assegurar a rentabilidade de meios físicos
e humanos numa área de ponta onde confluem vários
tipos de saberes. Hoje afigura-se como desejável a Licenciatura
em Filosofia como forma de garantir uma elevada formação
humanística e crítica.
A garantia de um equilíbrio racional entre um saber mais
puro e contemplativo e o desejo saudável de intervir na
vida social e económica é o caminho mais natural
de uma Universidade. A busca, em cada momento, dessa combinação
ideal será resultado de uma avaliação que
nunca pode ser considerada definitiva porque têm de ter
em conta a constante emergência de novos dados que carecem
de reflexão pontual e circunstanciada. |