António Bento

 

 

 

 


A imagem pairante: preta de neve
e branca de carvão

"Quando à noite voltaram para casa, os anões encontraram a Branca de Neve caída no chão e nem um leve sopro saía da sua boca. Estava morta! Levantaram-na, procuraram alguma coisa envenenada, despertaram-na, pentearam-lhe os cabelos, lavaram-na com água e vinho, mas foi tudo inútil: a querida menina estava morta. Deitaram-na numa padiola, sentaram-se os sete junto dela e choraram-na durante três dias. Depois, quiseram enterrá-la, mas ela parecia viva, continuando com o belo rosto rosado ("branca como a neve, vermelha como o sangue, negra como o ébano"). E disseram: 'Não podemos pô-la assim dentro da negra terra.' E fizeram então um caixão de vidro transparente para que se pudesse vê-la de todos os lados."

Primeiro lembrámo-nos de "Andrei Rubliev", filme de Andrei Tarkowski. Depois ocorreu-nos: por que é que, no "Urbi et Orbi", ainda ninguém opinou sobre "Branca de Neve"? Será apenas por o filme não estar em exibição nem na cidade da Covilhã nem na Beira Interior? Será porque ninguém, do número finito das pessoas que escrevem no "Urbi et Orbi", se deslocou a Lisboa para ver o filme? Afinal, é ou não é necessário, a um opinador que seja, ter uma opinião sobre o filme e decidir ir vê-lo, não a, mas em Lisboa. E com que sacrifício e custos pessoais? Com que farda de interioridade? Bom, afinal o jornal sempre possui o cinema em boa conta...
Bom, mas... E o filme? Será o filme parte nalgum debate que valha a pena fazer ou seja necessário fazer na opinião pública? E o debate? Fica-se pelo antagonismo entre os representantes públicos da opinião pública dessa entidade obscura e abstracta a que se chama "nº Fiscal" ou "nº de Contribuinte", os quais aspiram, no fundo, à vivenda, ao jipe e à transparência, tudo ao molho, e os representantes avulso, igualmente públicos da opinião pública, dos meros afectos artísticos pessoais, que a mais não aspiram do que à vaidade e ao reconhecimento de salão? O economista pede contas ao artista e o artista pede verdade ao economista? E o político não decide? Será? Haverá contradição entre as contas e a verdade? Entre economia e arte? Haverá? Hum...
Quantos contribuintes pensam assim e quantos contribuintes pensam assado? Quantos contribuintes não pensam assim? Quantos inimigos da contribuição pensam como contribuintes? Quantos pensam e quantos têm direito a pensar? Já há alguma sondagem, online ou não, sobre a coisa? Se há, que Deus nos livre de nela votarmos.
Poderá um filme representar e expiar a necessidade de continuar uma votação orçamental? Será prudente comparar o preço de um filme ao preço de um queijo? E o "et pluribus unum" do Benfica? Será verdade que "agora é que é"? Será prudente comparar o preço de Jardel ao preço da honra? Será Jardel honrado? E a Karen? Será interesseira ou benfiquista de verdade? Será importante saber o que é um orçamento de um filme e o seu não cumprimento por defeito? Afinal, um bom filme precisa de um orçamento maior, tal como um bom parlamentar precisa de ser um autarca para ser um bom político, uma boa pessoa e um amigo dos amigos da terra? Será?
E os que não pensam nem assim nem assado - por que pode dar-se o caso de não haver nada que pensar -, e vêem apenas um filme? Acharão que os representantes públicos da opinião pública andam em grande desatino? E deverão dar disso testemunho falando do filme, não falando ou falando de outra coisa? E pode-se falar do filme (dele, da polémica dele, etc) sem primeiro se o ter visto? Ó prurido deontológico! Ó superstição de meteco! Ó impotente desinteresse! Ora mas que porra... não é que a Internet ainda não comercializa todos os sectores da opinião pública, apesar de ser o futuro do "multimedia" e assim...
Dizemos agora que é talvez bom poder-se imaginar uma coisa que outros já viram e da qual nós apenas ouvimos falar. Neste caso de um filme. E damos connosco a pensar no que é "ver caleidoscopicamente", ver, por uma combinatória óptica, o desdobramento da imagem por triângulos através de um sistema de espelhos, desdobramento euclidiano e cartesiano, ("E ela [a madrasta] ficava tranquila porque sabia que o espelho dizia sempre a verdade"), que é sempre um ver de "Feira da Ladra", racionalizado por um simples cálculo económico levado a cabo pelas indústrias de entretenimento para os representantes públicos da opinião pública, e a lembrarmo-nos também de outras formas possíveis de existência do espectáculo (sempre com muito respeito pelo público e pelo contribuinte, disso não haja dúvida), de um "ver por ícones", que é um ver vítreo, e que este seria porventura mais autêntico, mais perigoso e possuidor, talvez, de mais destino. E até - perdoe-se-nos - mais económico, no único sentido honesto que a palavra possui. Insolência inocente a de César Monteiro, em tal caso?! Murmuramos, para nós, no "raccord".
Não. Ainda não vimos o filme de César Monteiro. Imaginamos apenas (e isso basta-nos) que o "escuro" (por que é que os representantes públicos da opinião pública o vêem e o designam como "negro"? E ao filme "fita a negro"?) possa ser uma forma necessária de olhar um ícone e que "Branca de Neve" seja a "imagem pairante" da vida de um poeta e novelista (Robert Walser) que sentiu, pensou e viveu sempre no ponto mais escuro da luz. Para eruditos, na antítese da aurora boreal; na penumbra que se segue ao cegar; na posteridade clássica pela qual Goethe suspirou, quando, ao morrer, balbuciou: "Luz, mais luz". Etc. E que César Monteiro estivesse, naquele preciso momento - enquanto filmava Branca de Neve - a mostrar policialmente Walser como uma ingénua e novelesca vítima da malvadez dos irmãos Grimm. Na profunda penumbra. E imaginamos (fazemo-nos uma imagem) precisamente porque não vemos.
Acreditamos, é verdade, que o filme seja um aborto. Não acreditamos é que um tal aborto não tenha mostrado o horror real que é o desaparecimento do antigo e divino parentesco existente entre a visão e luz, o qual implicava a aceitação do que não pode ser visto e a distância, nunca preenchida (que é a actividade propriamente dita da imaginação), em relação ao não visto: o limite do que não se pode ver como condição serena do próprio ver. Mais, acreditamos mesmo que ver assim é puro bruxedo.
E porque se trata de comunicar com um ícone pelos olhos e de fazer do ícone um objecto de culto privado, lembrámo-nos igualmente do disposto no "II Concílio de Niceia", do ano 787, o qual autorizou a veneração (sob a as formas da oração, da lâmpada votiva e da osculação), não à imagem, mas à incarnação da pessoa representada na imagem.
Para os que não sabem, a iconaclastia é uma intenção persecutória que visa a destruição final do elemento religioso e sobrenatural contido na imagem. Para os amigos dos ícones, os iconófilos, trata-se aqui apenas de uma formulação mais da funesta ignorância da nossa memória, da falta de destino em que entrou a imagem da nossa piedade. E da necessidade de a recordar às escuras para se a ver claramente. Fala, pois, para que eu te veja, ó criatura! Assim seja.

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