Estudar e ler:
para quê?
"Durante
a minha infância, mal tendo ainda aprendido a ler, houve
uma história da guerra dos Boxers que me causou uma grande
impressão. Se bem me lembro, era um oficial do Estado-maior
de Waldersee que contava a história de uma execução
de reféns chineses. Estes formavam uma bicha, numa longa
fila, para serem decapitados uns a seguir aos outros. Esse espectáculo
emudeceu-o. Foi então que o oficial ficou assombrado ao
ver, nessa bicha, um chinês a ler um livro. Esse espectáculo
aterrorizou-o tanto que rogou ao responsável pela execução
que salvasse a vida daquele homem. Conseguiu-o. Fez assim com
que o leitor tomasse parte nessa medida de graça. O chinês
agradeceu-lhe de maneira cortês. Mais tarde perguntei-me:
o que é que estaria ele a ler? Deveríamos saber
que texto era aquele. Hoje, posso conceber que ele tenha lido
um capítulo do Kin-Ping-Meh, ou um manual de cultura de
lírios. Aquele que conhece reconhece-se não pela
matéria, mas pela existência do seu saber. É
isso que devemos submeter à prova: tal como existem orações
vazias, existe também um sorriso que convence". -
Ernst Jünger, "Strahlungen" - "A cabana na
vinha" (anos de ocupação). Diário IV,
1945-1948.
Tal como no próprio
âmago do estudo se esboça uma lenda sobre o destino
e a culpa, há qualquer coisa que é lendária
no destino de todo aquele que estuda porque se sabe culpado.
Porque se entrega a uma forma de crença mítica,
aquele que estuda está destinado a ser contado entre o
número dos que lutaram, dos que rezaram e dos que obedeceram.
Pois que é precisamente de luta, de oração
e de obediência que se compõem a matéria,
a intenção e o voto contidos no estudo.
Quanto à luta, aquele que estuda sabe que o ódio
só é permitido ao inimigo, não ao irmão,
ainda que o inimigo possa ser a forma da sua própria pergunta
pelo estudo; quanto à oração e à
obediência, aquele que faz da estupefacção
a sina e a anunciação da sua "queda",
sabe que só a submissão dá a todos, mesmo
àqueles que desesperam sozinhos, a mais forte das relações
com o próximo. Porque é a verdadeira linguagem
da oração, a submissão é simultaneamente
adoração e a mais forte das ligações.
"A relação com o próximo", escreveu
um dia o estudante Franz Kafka, "é a relação
da oração". "E a relação
consigo próprio é a relação com a
ambição. É da oração que extraímos
a força para ambicionar".
É igualmente
da submissão que o estudioso haure a consciência
de que a culpa é o preço a pagar pelo carácter
indestrutível do estudo, que é o carácter
indestrutível do próximo. De acordo com o mais
sinistro dos paradoxos do estudante Franz Kafka, as manifestações
dessa luta pela indestrutibilidade que constituem a potência
do estudo, são inevitavelmente destrutivas, forçosamente
autodestrutivas. Por isso a paciência não é
tanto a "vis ac potestas" do estudante, quanto o único
recurso de sobrevivência do próprio cânone
do estudo: "festina lente" - apressa-te devagar; devagar
que tenho pressa.
E porque o estudo
é uma doença da tradição, exige-se
o sacrifício da verdade à sua transmissibilidade.
Se na "Haggadah" é o pai que explica ao filho
o estudo da lei sob a forma e a condição do exílio,
na "Halakhah", que separa, tanto o filho do pai, como
o pai do filho, desaparecem ambos no povo da aliança.
Na poderosa pata que então a "Haggadah" ergue
contra a "Halakhah", são as garras da autoridade
da moral que ferem e rasgam a moral da autoridade.
Quando se estuda
não se sabe ao certo o "que" se estuda. Sabe-se,
quando muito, que se sabe por que se estuda. É por isso
que a humildade e a procrastinação afligem o estudioso:
a humildade, porque se sabe atingido pela seta envenenada da
curiosidade, pela efectividade mítica que resulta do assombro
diante da distância, natural e cósmica, e por isso
estranha, entre a colérica fúria do trovão
e a luz abruta e inesperada do relâmpago, entre o espanto,
e o medo que o acompanha, e o seu apaziguamento; a procrastinação,
porque sabe hoje que saberá amanhã menos do que
alguma vez, nalguma hora de um dia, chegou talvez a saber. E
ainda porque isso o arrasta e o empurra para uma melancolia odiosa,
para uma tristeza sem fim (acedia) que o visita como o emblema
de um aviso e a força de uma adivinhação
nele mostrada.
Deste afecto,
que dilata a potência até à impotência,
que faz do acto uma convulsão e um estado de perpétua
crise, nasce uma superstição macabra, uma incompletude
monstruosa: "disiecti membra poetae", como um dia a
chamou, pelo nome e pelo título, Johann Georg Hamann:
"Ao sábio cabe coleccioná-los; ao filósofo
interpretá-los; imitá-los - ou ainda mais temerariamente
- ordená-los ao seu destino é a modesta tarefa
do poeta".
Na sua pele de
coleccionador, e porque só possui alma de estratega aquele
que não se nega à experiência da propriedade,
o estudioso, tal como Agostinho, sabe que só ao acto de
coligir ("colligere"), i. e., ao acto de juntar e de
recolher ("cogere") - no espírito e não
em qualquer parte - os conhecimentos dispersos no vasto palácio
da memória, é que propriamente se chama "pensar"
("cogitare"); enquanto filósofo, o estudioso
possui consciência da radical incompletude e infinitude
do estudo codificadas no acrónimo "PaRDeS",
literalmente, "paraíso": P representa "Pshat",
o sentido literal; R representa "Remez", o sentido
alegórico; D representa "Drash", a interpretação
talmúdica e haggadica; S representa "Sod", o
sentido místico. A este propósito, talvez sirva
de exemplo a resposta de Yitzhak de Berdichev, um dos grandes
mestres Hassidim, à interrogação a que foi
submetido quando os estudantes lhe perguntaram por que razão
se encontrava ausente a primeira página de todos os tratados
no "Talmude bavli" (Talmude da Babilónia), de
forma que o leitor era obrigado a começar na página
dois. "Porque, por muitas páginas que o estudioso
leia", respondeu o rabino, "não deve nunca esquecer
que não chegou ainda à primeira página";
na condição de poeta, o estudioso deve saber que
para tudo o que seja exterior ao mundo sensível a linguagem
só deve ser usada alusivamente e nunca comparativamente,
uma vez que, em conformidade com o mundo sensível, a linguagem
trata apenas da posse e das suas relações.
Quanto aos livros,
de que um estudioso se deve ocupar, escreveu certa vez Franz
Kafka, ao seu amigo Oskar Pollak, o seguinte:
"Parece-me que deveríamos ler apenas livros que nos
mordam e firam: se o livro que estamos a ler não nos desperta
violentamente como uma pancada na cabeça, para que nos
havemos de dar ao trabalho de o ler? Para nos dar felicidade,
como tu dizes? Por Deus, seríamos igualmente felizes sem
livros nenhuns; em caso de necessidade, poderíamos nós
próprios escrever livros que nos tornassem felizes. Do
que precisamos é de livros que nos atinjam como a desgraça
mais dolorosa, como a morte de alguém que amávamos
mais do que a nós próprios, que nos façam
sentir como se tivéssemos sido expulsos para o meio dos
montes, longe de qualquer presença humana, como um suicídio.
Um livro tem de ser a picareta par o mar gelado que há
em nós. É isto que penso". |