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Livre Exame      


 


João Correia

Completada a estação tonta, sacudida a areia das praias, caídas as primeiras folhas, retiradas, enfim, as roupas de inverno, regressa-se à seriedade dos grandes temas estruturantes, os que não nos deixam margem para respirarmos nem dormirmos sossegados. Esta minha primeira crónica inaugura o Livre Exame onde se observam à lupa, sem outra encomenda que não seja a da consciência, temas candentes que fazem a actualidade, como dizem os jornalistas. Escolhi alguns assuntos de grande fôlego: a ) o meu regresso ao jornalismo; b) a permanência do Zé Maria no BB (Big Brother); c) a entrevista alucinante de Francisco Pimentel e d) a descoberta de um livro perdido.

Comecemos por A: o meu regresso ao jornalismo. Quando vim para a Ubi, releguei para o (fundo) baú da minha história pessoal o meu compromisso com os ofícios jornalísticos, em qualquer outra vertente que não fosse o ensino dos mesmos. Porém, os Deuses não me deixaram sossegado e manifestaram-se através da inquietação de António Fidalgo, um fenomenólogo da Escola Alemã que se dedica apaixonadamente aos computadores e à Comunicação, e que arrasta num turbilhão frenético tudo quanto se move nas proximidades. "Você vai ser director-adjunto do URBI." À mistura com uma paixoneta mal reprimida, a crença profética do meu interpelante nas virtualidades do jornalismo On-line deixou-me pregado no chão, atado à impossibilidade de dizer que não. Tudo farei para que se arrependa da nomeação: farei crónicas incompreensíveis, criticarei as instituições sagradas, lançarei, com o auxílio da minha pena, bombas nos corredores desta instituição vestuta. Aqui está o primeiro contributo.

B: A permanência do Zé Maria. Os alunos da Disciplina que mais gosto de ensinar - Sociedade e Comunicação - lembram-se com certeza dos meus devaneios adornianos. Pois, há novidade: deixei de lado esse filão. O Zé Maria é, agora, o meu referencial cultural. Fora com a Dialéctica do Iluminismo. Já não sou um intelectual elitista. Agora misturo-me com o povão, no meio do Telmo, do Marco, da Susana, da Célia. O meu coração chora, dilacerado, pela expulsão precoce da Riquita. Deitemos fora os livros, os poemas, os filósofos, o bom gosto, a contemplação estética, a sabedortia acumulada. O mundo gira à volta do Zé (permite-me que te trate assim, meu Grande Irmão popular e democrata, meu compincha) e da sua relação com as galinhas. Descobriu-se (ó descoberta gloriosa) que numa parede desta universidade já se dependuraram cartazes de apoio ao Zé Maria. Mesmo nestes locais poeirentos, onde se insiste em preservar o nefasto vírus elitista responsável por séculos de civilização e cultura (xô, suas vacas sagradas), já penetra a boa nova. Gobbels quando ouvia falar de cultura puxava de uma pistola. Finalmente, os Gobbels deste mundo democratizaram-se e ganharam modos. Para quê queimar livros quando basta fazer arder os miolos? Para quê tanto esforço quando basta uma televisão?

C: A entrevista de Francisco Pimentel. Nesta minha regressada incursão no espaço público, defronto-me com uma inspirada entrevista do Advogado Francisco Pimentel, onde são postas em causa algumas das incontroversas excelências da nossa autarquia. Em três penadas diz o ex-deputado do PSD: a Câmara faz obra, mas não tem projecto de qualificação para cidade nem estratégia de liderança regional para a Covilhã. Da entrevista resultam várias coisas: a minha crença na infalibilidade presidencial é sériamente abalada. Em segundo lugar, a unanimidade da maioria sofre um abanão, ainda mais acentuado pelo recente bater com a porta por parte de um brilhantíssimo acessor que fez parte do seu percurso nos corredores desta casa. Finalmente, a oposição surge em todo o seu esplendor: com os restantes partidos afastados dos jornais, incapaz de mobilizar causas, a oposição política ao PSD resume-se ao interior do próprio PSD. De fora só resta a continuação agonizante de sucessivos remakes do filme "Não acordem o Rato Adormecido". Pegando na deixa, a Comissão Política do PSD tratou, porém, Pimentel como uma espécie de dissidente irresponsável. O que poderia ser uma demonstração de um saudável debate de ideias foi transformado numa afronta ao líder. É caso para perguntar : onde terão eles adquirido tamanha dose de subtileza?

d) Fui a um Hipermercado e defrontei-me com um boa edição encadernada de "Tom Jones" de Henry Fielding, ao preço da chuva. O livro tinha um pequeno rasgão na tela da capa, praticamente invisível. Perguntei se havia outro. O responsável da loja que me atendeu desfez-se em desculpas por causa do rasgão e sugeriu-me que trocasse o livro por outro, com encadernação ainda mais vistosa, e sem rasgão. "E até mais barato.", dizia o zeloso funcionário indiferente ao facto de a obra ser outra, por sinal, um pastelão de um best-seller da literatura de galinheira. Porém, a capa era mais bonita e o funcionário até comentava como era possível que o outro livro, mais velho e menos vistoso, podia ser mais caro.
Percebi tudo: todos os dias, Irmão Zé Maria, te encontro, a espreitar por de cima das cabeças luminosas dos políticos, celebrado na voz maviosa dos cantores pimba, espreitando no interior dos best selers dos hipermercados ao pé da Célia e do Marco. Zé, tu és o nosso símbolo nacional.

 

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