Professores da UBI regressam
após três meses em Timor
"O poder do gesto
é tudo"
POR CATARINA MOURA
Entre Abril e Junho, Manuel
Magrinho e Henrique Manso, ambos professores na Universidade
da Beira Interior, embarcaram numa aventura que os levou a Timor.
Voluntários numa iniciativa da Fundação
das Universidades Portuguesas e do CNRT, ensinaram português
em Díli durante três meses, adaptando-se à
humidade, ao calor, aos mosquitos e a um cenário interminável
de casas queimadas e ruínas . No regresso, trouxeram muitas
recordações de um País que só agora
está a aprender a sê-lo e de um povo em que permanece
a vontade de lutar. Recordações que partilham connosco.
Urbi @ Orbi - Como encontraram
Timor?
Henrique Manso - Pessimamente. Foi talvez dos maiores
choques da minha vida, chegar a Timor. Curiosamente, chegámos
no dia 1 de Abril...
Manuel Magrinho - ... dia das aldrabices!!!
HM - ... e aquilo de facto parecia mentira. Já
havia vários meses que o território tinha sido
incendiado e destruído mas Timor estava exactamente na
mesma, parecia que tudo tinha acontecido no dia anterior.
U @ O - O que os levou a embarcar
nesta "aventura"?
MM - Fomos como voluntários
numa iniciativa da Fundação das Universidades Portuguesas
[FUP], que pretendia enviar professores para ensinar em Timor.
HM - Na verdade, o processo desenvolveu-se muito
rapidamente. Durante o período de férias de Fevereiro,
na UBI, recebi no meu cacifo uma carta dizendo que partia dentro
de 15 dias, e nessa altura ainda nem tinha dado resposta. Portanto
tive que decidir em poucas horas. Tanto que, quando o meu chefe
de Departamento soube da iniciativa e da minha vontade de ir,
falou comigo e pediu-me que integrasse esta acção
durante o Verão, pois nessa altura há mais disponibilidade
para dispensar docentes. Mas como surgiu esta oportunidade tão
repentinamente, acabámos por partir da Covilhã
em finais de Março.
"NUM PAÍS
QUE TEM CARÊNCIA DE TUDO, DE QUADROS, DE PESSOAS QUE ORGANIZEM,
É MUITO DIFÍCIL ADAPTARMO-NOS E HABITUARMO-NOS
A QUE AS COISAS NÃO FUNCIONEM E, SOBRETUDO, QUE NÃO
FUNCIONEM COMO AQUI."
U @ O - Quando partiram, já
sabiam exactamente o que iriam fazer e encontrar?
HM - Havia um projecto concreto. Antes de mais, iríamos
colaborar com o CNRT naquilo que fosse preciso. A FUP pretendia
recrutar docentes das diversas áreas para ensinar alunos
universitários finalistas. Mas à última
da hora, quer dizer, dois ou três dias antes de partirmos,
o CNRT decidiu outra coisa, um bocado chata para alguns professores:
toda a gente iria ensinar português. Para mim não
foi grande transtorno porque de qualquer maneira era o que iria
fazer, mas...
MM - ... e eu não sou professor de português
mas ensinei com muito gosto!
U @ O - E a adaptação, como foi?
MM - Uma maravilha!
HM - Em termos de clima, confesso que ao chegarmos
foi difícil. Não era tanto o calor - e estava um
calor abrasador - era sobretudo a humidade, coisas como ter que
mudar de t-shirt a cada três horas, tomar seis ou sete
banhos por dia... mas no fim de um dia ou dois já estávamos
adaptados. Além disso, mais para o fim já estava
um bocadinho mais fresco! Por outro lado, o nível de vida
timorense revelou-se bastante caro. Incomportável para
a maioria da população! Para terem uma ideia, uma
cerveja australiana custa três vezes mais em Timor que
no seu País de origem e isso acontece com a maioria dos
produtos importados. O que vai ajudando é que, apesar
de a moeda oficial ser o dólar americano, em termos práticos
só se usa a rupia e, eventualmente, o dólar australiano.
Isso revela-se muito útil no mercado, onde a maioria da
população faz compras, ou seja, tem poder de compra.
U @ O - Ficaram bem instalados?
MM - Inicialmente ficámos num convento. Tendo
em conta as condições em que se encontra Timor,
nós estávamos divinamente instalados - mais ou
menos protegidos dos mosquitos, tínhamos onde comer e
fazer as necessidades... As condições de higiene
é que podiam estar muito melhores e se não estavam
não era por falta de dinheiro. Uma das nossas primeiras
guerras foi pela limpeza. Depois mudámos para casas pré-fabricadas,
já com óptimas condições, feitas
propositadamente para os professores que estão a chegar
agora a Díli. Os que vão para outras cidades terão
ainda que enfrentar situações complicadas.
HM - Aquilo é tudo muito lento, e num País
que tem carência de tudo, sobretudo de quadros, de pessoas
que organizem, é muito difícil adaptarmo-nos e
habituarmo-nos a que as coisas não funcionem e, sobretudo,
que não funcionem como aqui. É absolutamente diferente.
"É
NECESSÁRIO SER MUITO FLEXÍVEL, SABER FAZER MUITO
TEATRO E TER CONSCIÊNCIA QUE ENSINAR PORTUGUÊS DURANTE
DOIS MESES E MEIO A PESSOAS QUE DOMINAM DUAS LÍNGUAS COMO
O TETUM E O BAAS INDONÉSIO, QUE SÃO IDIOMAS MUITO
SIMPLES EM TERMOS GRAMATICAIS E ATÉ VOCABULARES, É
QUASE IMPOSSÍVEL..."
U @ O - Houve receptividade
ao vosso trabalho?
MM - Bastante.
U @ O - E dificuldades?
MM - Já estávamos à espera que
não existissem condições, que faltassem
cadernos e todo o tipo de material, pelo que a FUP tratou de
levar tudo. Acho que só faltavam as mesas e as cadeiras.
Mas a falta de organização local atrasou-nos um
pouco.
HM - Confesso que uma das nossas maiores dificuldades,
que terá sido também o maior mérito do nosso
trabalho, prende-se com o facto de termos sido os primeiros a
ir. Quando lá chegámos estavam cinco ou seis professores
a trabalhar há um ou dois meses, com turmas específicas.
Nós fomos pegar num grupo em que nada estava organizado.
Para mais, o responsável pela Educação,
responsável pela organização deste tipo
de coisas, não estava em Timor, de forma que durante as
duas primeiras semanas foi complicado arranjar turmas, arranjar
locais onde ensinar, ... Por outro lado, demos aulas em duas
escolas em horários absolutamente impraticáveis.
Em Timor, o dia começa por volta das 5 da manhã
e termina lá pelas 5 da tarde. Como se pode imaginar,
a essa hora já ninguém trabalha e é quase
impraticável dar ou receber aulas. Nós ficámos
com horários das 15h30 às 18 horas e, na escola
de Balide, tivemos que pedir aos funcionários da EDP que
lá estavam e à FUP que nos electrificassem a escola,
pois era impossível dar aulas no escuro. Mas tudo se resolveu
e correu bem.
U @ O - Regressaram com a sensação de ter cumprido
os objectivos que os motivaram inicialmente?
HM - Para mim, apesar de ser professor de português,
esta foi uma experiência completamente nova. Na UBI ensino
Latim e Literatura Portuguesa, o que não tem nada a ver
com ensinar português a pessoas que não sabem nada
da língua. É necessário ser muito flexível,
saber fazer muito teatro e ter consciência que ensinar
português durante dois meses e meio a pessoas que dominam
duas línguas como o Tetum e o Baas Indonésio, que
são idiomas muito simples em termos gramaticais e até
vocabulares, é quase impossível...
MM - ... não é impossível...
HM - Eu acho quase impossível que eles saibam
português ao fim de dois meses e meio. É possível
ensinar-lhes alguma coisa, claro, e os alunos ficam a saber mais
do que sabiam, mas ... Por exemplo, eu adoptei um método
nas aulas que causou algum furor por lá e teve bons resultados.
Aula sim, aula sim, incluía sempre uma parte musical.
Como tinha levado muita música portuguesa, todas as aulas
se aprendia uma. Um dia tentei fazer uma pausa mas, no fim da
aula, ninguém saiu. Lá tive que pôr música
e que os pôr a cantar! Ou seja, isto tudo passa também
por olhar para os alunos e ver o que eles gostam...
U @ O - Dizem que os vossos alunos não estavam familiarizados
com o português. Como fizeram para comunicar com eles?
Aprenderam alguma das línguas que se falam por lá?
MM - Não. O poder do gesto é tudo!
Além disso, trabalhámos com livros feitos especificamente
para orientar o ensino do português, se bem que aqueles
livros não eram os mais adequados... mas há sempre
forma de nos fazermos entender. Se é "acima",
sobe-se acima da cadeira, se é "abaixo" põe-se
a mala debaixo da mesa...
HM - E entre nós acabávamos por trocar
experiências e discutir a melhor forma de dar esta ou aquela
matéria. Mas muitas vezes as aulas funcionavam na base
do improviso, porque surgem sempre perguntas inesperadas e há
que ser muito maleável. Além disso, não
é com aquele livro - "Português sem Fronteiras"
- que se começa a ensinar português, até
porque a personagem principal é um Steve, que é
americano e tem amigos alemães, ingleses e franceses,
e vivem todos em Lisboa!! Pronto, e nós estávamos
em Díli e os nossos alunos vinham da Indonésia...
U @ O - Há continuidade para o vosso trabalho?
MM - Continuidade mas de outra forma. Nós
fomos como voluntários, durante um determinado período
de tempo. Os que vão agora são professores contratados,
pessoas que acabam o curso e vão para lá ter o
seu primeiro emprego. Pelas informações que temos,
estarão lá cerca de 200. O português vai
de facto continuar a ser ensinado, mas não por professores
universitários. Essa é a grande diferença.
"O CONVÍVIO COM OS OUTROS PROFESSORES, COM OS TIMORENSES,
A PARTE HUMANA... O QUE MAIS RECORDO É UMA VIDA MUITO
INTENSA. SÃO TRÊS MESES DE MUITAS RECORDAçÕES."
U @ O - Que guardam como mais
gratificante nesta experiência?
MM - O contacto com os timorenses. Pelas pessoas valia
a pena voltar...
HM - É muito difícil seleccionar. O
convívio com os outros professores, com os timorenses,
a parte humana... O que mais recordo é uma vida muito
intensa. São três meses de muitas recordações.
Lembrar-me-ei sempre de uma história muito forte, por
exemplo. Nós tínhamos uma colega que tinha sido
criada em Timor até aos 9 anos e não voltava lá
há 35. No nosso segundo dia em Díli, fomos tentar
encontrar a casa da sua sobrinha. Ela sabia mais ou menos onde
era, mas quando lá chegámos não encontrámos
nada. Metemos conversa com uns timorenses que ali estavam e descobrimos
que um falava inglês. Depois de cinco minutos a falar com
ele, a nossa colega, subitamente, disse "ó Manelito,
dá cá um beijinho à tia!". Bem, foi
uma coisa... ele desatou logo a chorar...
U @ O - Mais momentos que gostassem de partilhar?
HM - Dois ou três dias depois, tivemos talvez
a melhor refeição de todo o tempo em que estivemos
em Timor. Muito típica, muito boa! Foi oferecida pela
antiga professora primária dessa nossa colega. Arroz,
catupa, frango, água de coco, tudo impecável, numa
mesa que era uma grande tábua com tijolos por baixo...
mas em nosso redor a casa estava toda ardida. É tocante...
porque, apesar de tudo, havia alegria e generosidade ali dentro!
Apesar de se ver muito desânimo, há também
muita gente que não se deixa desanimar, que tem vontade
de mudar as coisas. Mas, infelizmente, vivem-se duas realidades
em Timor.
U @ O - Duas realidades?
HM - Sim. Uma coisa são os timorenses, que
estavam mal e, parece-me, continuam mal. Outra coisa é
todo aquele aparato internacional que lá anda. Muitas
pessoas estão ali para ajudar e, é verdade, a prestar
um óptimo serviço. Mas também há
muita gente só a ganhar dinheiro, uma administração
que derrete o dinheiro todo em jipes, em burocracias e não
o deixa chegar aos timorenses. É inconcebível que
com, tanto dinheiro que entra naquele País, com tanta
ajuda internacional, se tenha feito tão pouco. Há
regiões onde a pobreza é extrema. Há fome
em Timor. Ora aquilo é uma território pequeno,
é metade de uma ilha, tem pouco mais de 600 mil habitantes.
Se um País assim não se reergue rapidamente, então
é porque algo não está bem. Aliás,
Timor tem recursos próprios - petróleo, paisagens
lindíssimas... Ficou muito a recordação
de um País lindíssimo, com grande potencial turístico.
As praias, os corais... lindíssimo. E outra coisa que
não ajuda são todos os jornalistas que lá
estão, a maioria mais interessada em histórias
bombásticas que em retratar a realidade. Então,
de vez em quando, surgem reportagens dramáticas a falar
de situações que não foram nada... Chegámos
a ter que telefonar para casa só para avisar que o que
iam ver no telejornal não tinha sido bem assim e que não
deviam preocupar-se!
"É INCONCEBÍVEL QUE, COM TANTO DINHEIRO QUE
ENTRA NAQUELE PAÍS, COM TANTA AJUDA INTERNACIONAL, SE
TENHA FEITO TÃO POUCO. HÁ REGIÕES ONDE A
POBREZA É EXTREMA. HÁ FOME EM TIMOR."
U @ O - Como deixaram Timor?
MM - Notou-se logo a diferença. Pelo menos
aqueles alunos que começaram connosco já falavam
alguma coisa de português. Por outro lado, estava muito
mais decidida a opção da língua portuguesa.
Quando lá chegámos a escolha ainda estava um tanto
ou quanto tremida entre a população.
HM - Quanto ao nosso trabalho, agora está-se
muito melhor, há muito mais organização,
tanto da parte do CNRT como do Ministério da Educação
português. Entretanto chegou uma pessoa responsável
pela distribuição dos serviços, dos professores,
dos alunos... quem vai agora já não passa pelo
que nós passámos.
Relativamente a Timor, algo mudou durante aqueles meses. O mercado
está cada vez maior, fez-se a limpeza das ruas, reconstruiu-se
alguma coisa, a vida vai retomando o seu ritmo... se bem que
é absolutamente incrível que, quase um ano depois,
a maior parte das casas continue destruída e sem telhado. |