Embriões
de Resistência
POR JOSÉ GOULÃO*
O mítico ano 2000 entrou com proclamações
de optimismo e razões de pessimismo. Nunca o Homem teve
ao seu dispor tão grandes capacidades de gerar riqueza
e bem estar e nunca foram tão profundos os desequilíbrios
de desenvolvimento, nunca foi tão alarmante a degradação
ambiental. As elogiadas virtudes da globalização
económica e a propagação da democracia formal
não disfarçam este desencontro: às importantes
conquistas tecnológicas e aos supostos avanços
da liberdade individual corresponde um inquietante défice
de Humanismo.
O fim da Guerra Fria e a dissolução da ameaça
permanente de um conflito global exterminador criaram expectativas
de esperança e até expressões de euforia.
Exageradas, como então se adivinhava e hoje se confirma.
No confronto entre os dois grandes blocos triunfou afinal uma
corrente extremista de um deles, o neo-liberalismo ou capitalismo
selvagem. A vitória proporcionou-lhe a transformação
em ideologia da globalização: absoluta no plano
económico, única no plano político, deliberadamente
oca no plano do pensamento criativo. Os grandes impérios
económicos e financeiros substituem os Estados na luta
pela conquista de mercados, de matérias primas, de mão
de obra cada vez mais submetida; os senhores desses impérios
governam na sombra através dos políticos, cada
vez mais submetidos; as técnicas de marketing invadiram
os domínios das ideias, cada vez mais clandestinas.
Milhões de cidadãos outrora oprimidos por ditaduras
terroristas podem agora votar de tempos a tempos. Os governos
e os parlamentos que elegem não podem definir políticas
económicas sem a chancela do Fundo Monetário Internacional,
não asseguram acesso a créditos sem o aval do Banco
Mundial, não ousam transaccionar bens sem o visto da Organização
Mundial de Comércio. Esses cidadãos vivem agora
em democracia, mas não decidem. Têm da liberdade
o sabor mas não a substância.
Nesta cantada aldeia global, 55 em cada 60 habitantes vivem na
carência; apenas cinco em cada 60 provam a abundância.
A produção alimentar mundial é excedentária,
chega hoje para satisfazer as necessidades básicas dos
mais de seis milhões de aldeões. Mas 30 milhões
deles morrem de fome todos os anos e 800 milhões estão
subnutridos. E assim chegou o mítico ano 2000.
A cultura global, ensinada pela televisão global, confiante
nas virtudes inesgotáveis da Internet, proclama o optimismo
oficial. Os que teimam em continuar a reflectir e a agir sobre
o mundo real são uma espécie de marginais, ou mesmo
"díscolos" como aqueles que em Seattle ousaram
contestar a Organização Mundial do Comércio.
Como outros travaram as negociações para o Acordo
Multilateral de Investimentos (AMI), que os mentores proclamavam
como a "constituição universal", a vitória
absoluta do ultraliberalismo.
A Internet teve um papel fundamental como argamassa destas contestações.
Um meio emblemático da globalização serviu,
afinal, para perturbar a engrenagem trituradora do regime único.
Nascem embriões de resistência global, mesmo quando
a desproporção de forças é desencorajadora.
Mas o Homem é criativo e lutador na sua essência,
ainda que o Humanismo esteja subjugado pela mais enganadora das
opressões - a da liberdade virtual.
* IN BEIRA IN / AAUBI
|