José Geraldes* |
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A poesia no drama da vida
A poesia, ao contrário
do que muita gente pensa, vai muito além da mera expressão
de sentimentos. E não se reduz a catalogar sonhos irrealizáveis.
A poesia traduz realidades concretas do quotidiano. Identifica
a personalidade do poeta. E pode até transformar-se numa
arma. As canções de intervenção e
de protesto, são disso testemunho.
Uma poetisa de alto gabarito do actual panorama literário
português, Maria Gabriela Llansol, publicou, recentemente,
o livro Onde vais, drama-poesia?
O título por si só denota que a poesia até
se transforma em drama. E diz-nos em palavras poéticas,
como somos e quem somos.
Registemos um poema que retrata os momentos que integram as nossas
vidas: "Afirmar, distinguir, elevar/quebrar os nós/desatar
o afecto preso/ romper o medo/cuidar do humano/nada propor/que
não tenha sido antes um risco assumido e vivido pelo próprio
rosto do texto. Criar lugares vibrantes a que se possa ascender
pelo ritmo, criar na linguagem lugares comuns de abrigo, refúgios
de uma inexpugnável beleza/ reconhecer-se na nobre partilha
da palavra pública/do dom de troca com o vivo da espécie
terrestre".
Qualquer interpretação do texto poético
é sempre passível de subjectividade acrescida.
Mas há palavras que, mesmo em poesia, exprimem em clareza
límpida a mensagem comunicada. Atente-se no verso: "Afirmar,
distinguir, elevar". O valor de uma vida mede-se pela afirmação
ou seja pela convicção, pela coerência, pelo
que se é e não pelo que se tem ou parece. O distinguir
marca a diferença, a fuga à banalidade, ao trivial,
o caminho que se quer seguir. O elevar apela aos valores mais
altos que se distanciam da vulgaridade e da mediocricidade, a
característica de tantos que se julgam acima de todos.
Os versos "quebrar os nós", "desatar o
afecto preso", "romper o medo" vão no sentido
de uma liberdade que não se coaduna com a hipocrisia e
os fariseísmos que por aí pululam. Depois do hábito
dos pragmatismos em política, do racionalismo frio em
decisões, do egoísmo na sociedade, sente-se a necessidade
dos afectos em que se dá primazia à dignidade do
ser humano. E os afectos aproximam as pessoas e tornam-nas mais
humanas. Mas para "desatar o afecto preso", há
muros de medos a abater. Os medos persistem porque falta a libertação
interior das consciências. Onde o medo impera, asfixia-se
a pessoa.
Daí a tarefa primordial do "cuidar do humano"
que passa pela atenção ao outro e pela criação
das condições mínimas de subsistência.
E pela igualdade de oportunidades para o seu desenvolvimento
e acesso a todo o tipo de bens materiais, culturais e espirituais.
Para que tal aconteça, é preciso assumir riscos.
E todas as propostas de mudança e de inovação
na sociedade não estão isentas de "riscos
assumidos". E "vividos" para que possam ter credibilidade.
Quem não for capaz de "assumir os riscos" dos
novos desafios da globalização, está condenado
ao fracasso, em todos os sectores da actividade humana. A sociedade
actual não se compadece com timoratos. A prudência
é necessária. Mas sem cortar as asas da audácia.
Os "lugares vibrantes" surgirão. Importa encontrá-los.
Estes "lugares" podem revestir várias formas.
O "lugar" corresponde à realização
pessoal de cada um. Por isso viver não é vegetar.
Mas, nos "lugares" que se ocupam, dar sentido ao que
se faz. Para se "reconhecer na nobre partilha da palavra
pública" e no "dom da troca". A partilha
e a troca têm um nome: solidariedade. A todos os níveis.
Entre pessoas e grupos. Na ajuda aos mais necessitados e no dar
um sorriso a quem sofre. Quer na alma, quer no corpo.
A solidariedade não é só social. Entra no
domínio dos afectos, no dar as mãos pelas causas
justas, no aliviar de quem sofre doenças físicas
ou morais. No romper da solidão dos que nas multidões
se sentem sós ou em situações de risco.
Com a partilha da palavra, todos nos tornamos mais humanos. E
elevamos o mundo.
*NC / Urbi et Orbi |