Podíamos
começar por duas perguntas: quem é M. Butterfly,
no filme de Cronenberg? E quem é o seu amante? "M.
Butterfly", o filme, conta-nos a história de um amor
sem medida. Um amor que vai muito além do corpo, sem contudo
se libertar dele. Se quisermos dizer de outra maneira, pode ser
assim: Gallimard é um diplomata francês em Pequim
que se apaixona por uma diva da ópera chinesa. Isto é
a constatação mais objectiva possível dos
factos. Mas a verdade é outra, bem mais subtil e luminosa
- e, contudo, extremamente obscura: Gallimard apaixonou-se por
uma aura.
O que é essa aura? Não se pode dizer. A aura é
etérea, como as almas, como os sorrisos, como as seduções.
Não lhes podem fazer justiça as palavras. Não
são simplesmente belas, pois são impalpáveis,
são um movimento, um enigma, um brilho. Entram nos espíritos
que por elas se apaixonam em silêncio, anonimamente. Elas
podem emanar de um corpo, até habitá-lo. Mas esse
corpo, como neste filme, já é mais que carne, já
não tem género nem peso. M. Butterfly, a diva,
é uma silhueta, a silhueta da mulher perfeita, carnalmente,
sensualmente, fantasmagoricamente. E, contudo, não é
mulher. É enigma.
É esse enigma que há-de arrastar Gallimard para
fora da realidade. Não se pode chamar ilusão a
essa fuga, porque vivida com tal intensidade essa paixão
só pode ser real. É o enigma sempre em aberto,
indecifrável, que o irá conduzir à perdição.
De certa forma, pode ver-se aqui uma variante do enigma oriental,
esse fascínio quase lascivo que nos atrai e não
nos despega.
Mesmo quando perde a amante, Gallimard conserva a sua silhueta.
Não mais se libertará dela, da sua aura, dos seus
perfumes e gestos. Há algo de onírico e surreal
no seu amor louco: será a beleza fulgurante da loucura,
aquela que confina com a morte? Será a absoluta sinceridade
do seu amor? Será a ingenuidade de todo o amante despojado?
Será que o caminho para a morte é, neste caso,
feito de mágoa? Serão as feridas que se abrem consequência
de uma dor infeliz? Ou serão, antes, os sinais de uma
disponibilidade absoluta para sentir, para nunca abdicar de sentir,
para teimar em sentir, mesmo que a dor venha não só
de uma perda, como de uma mentira insuportável, de uma
traição sem nome?
Sobre os afectos e suas profundidades, sobre os corpos e suas
magias, sobre os sonhos e seus apagamentos fala este filme. Com
perguntas e inquietações, como muito poucos outros
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