Adulteração
a bem da nação
POR RUI PELEJÃO*
"Ah a frescura
na face de não cumprir um dever!
Faltar é positivamente estar no campo!
Que refúgio o não se poder ter confiança
em nós!
Respiro melhor agora que passaram as horas dos encontros.
Faltei a todos, com uma deliberação do desleixo,
(...)
Sou livre, contra a sociedade organizada e vestida."
Álvaro de Campos
Adulteração é
o nome dado ao processo químico pelo qual adolescentes
irresponsáveis se transformam em adultos conscientes.
Adultera-se o espírito livre em prol do espírito
consumidor, contributivo e investidor no mercado de capitais.
Em Portugal, a mitologia da "Democracia de Sucesso",
instituída pelo Prof. Cavaco Silva e envergonhadamente
continuada pelo nosso homem das Donas, criou um fenómeno
que não sendo inédito tem as inevitáveis
idiossincrasias (que palavrão) do meridiano luso.
O primado da Economia e a criação de um sistema
de valores baseado na santíssima trindade da competitividade
/ produtividade / sucesso, marcou indelevelmente toda uma geração
que cresceu e viveu a primeira parte da sua vida sob os auspícios
do consulado do Prof. de Boliqueime.
A cultura dessa geração tem inevitavelmente um
fim - o sucesso e, consequentemente, um meio de o atingir - a
competição desenfreada.
Fomos treinados como ginastas romenos ou galgos dopados, para
sermos os melhores e estarmos armados até aos dentes para
as duras batalhas que a vida e o mercado de trabalho nos reservam.
A entrada na universidade é a primeira grande trincheira
a transpor a estocadas de baioneta. Quem não entrar no
"campus", ou entretanto ficou pelas ruas da amargura,
é condenado a uma espécie de ostracismo social,
muito parecido com aquele que os animais selvagens dedicam às
suas crias mais fracas.
É natural que tendo falhado os objectivos que lhes foram
superiormente traçados, estes "enfant terribles"
entrem numa crise de desorientação e desmotivação,
que coincide com uma das fases mais agudas do existencialismo
juvenil. O refúgio nos "Paraísos artificiais"
dos copos, das noitadas, drogas e amor vadio pode, nestes casos,
traduzir e cristalizar a frustração interior, e
aquela lânguida sensação de depressão
em lume brando.
Uns recuperam anos mais tarde, descobrem o seu caminho ou conformam-se
com a fatalidade do pseudo-falhanço. Outros não.
Esta dicotomia americanizada entre "winners" e "loosers"
cria, desde logo, uma clivagem na "geração
de sucesso" em que Vicente Jorge Silva decidiu "marrar"
sob o epíteto de "geração rasca".
O sistema de ensino português, que é o instrumento
das vontades paternas, contribui para essa diabolização
dos "loosers" e beatificação dos "winners".
Faz mais do que isso - inventa vencedores e deserda vencidos.
Vicia os dados e faz batota.
A condução da vida académica é um
encadeado de escolhas e opções quase definitivas
- umas próprias, a maioria impostas ou condicionadas.
O problema é que as escolhas raramente são bem
informadas.
Por exemplo, quem é que antes de uma determinada licenciatura
sabe minimamente o conteúdo das cadeiras que vai ter?
Ou quais são as perspectivas de evolução
do mercado de trabalho de recém-licenciados daquele curso,
e quanto ganham, quantas horas trabalham, etc?
Aposto que muito poucos.
Chama-se a isto informar a escolha. Evita enganos, perdas inúteis,
e escalada no consumo de anti-depressivos.
Em última análise, qualifica a mão de obra
para as reais necessidades do País, respeitando as legítimas
aspirações dos indivíduos.
A cultura de recuperação tem de passar a fazer
parte do manual dos pedagogos.
Não há "loosers" nem casos perdidos,
apenas erros de casting, vocações baralhadas e
outras ocultas. É preciso abrir horizontes, dar opções
e despedaçar o estigma herdado dos nossos progenitores
de sacramentalização de um pequeno leque de profissões
em detrimento de todas as outras.
Apenas um bom carpinteiro que é um mau advogado.
Voltemos então à questãozinha do sucesso,
o húmus que fertiliza a civilização ocidental
da fatiota Boss e do "udo na Mango".
Sucesso é uma equação composta pela soma
da fama e do reconhecimento público ou social com realização
pessoal, vezes poder de compra.
Como é que se obtém? Numa carreira perto de si.
- Status e dinheiro fazem uma pessoa bem sucedida.
Sob o manto de uma sociedade de matriz neo-liberal, foi criado
um sistema de expectativas de consumo, cuja satisfação
é cada vez mais sinónimo de felicidade. É
para satisfazer essas expectativas e o desejo opressivo da compra
que nos matamos a estudar, a trabalhar, a piscar os olhos aos
patrões e a piscar os olhos aos patrões e a pisar
os colegas.
Não estou a dizer para "sonharmos baixinho",
estou só a dizer para sonharmos com outras coisas, sem
ser com o Audi A3, a penthouse num condomínio guardado
por Rotweillers, as compras em Paris ou com a nossa fronha espetada
na primeira página da "Caras", em pose numa
praia das Caraíbas.
Não sonhemos só com o trabalho e a carreira.
Acabemos com a tirania do sucesso, afugentemos o Novo Papão
que é o desemprego, porque a pior forma de ele se manifestar
é o desemprego mental, doença que nos torna refém
de empregos e créditos que nos destroem, com o único
fito de satisfazermos as nossas expectativas de consumo.
Se mudarmos os sonhos, pode bem acontecer que se vá o
tempo de mudar o mundo, antes que o mundo nos leve ao tapete
como pugilistas de crânio amassado.
Afinal, uma Renault 4L leva-nos tão longe quanto um BMW
ou um Audi, com a vantagem de levar menos tempo a pagar e, se
formos em boa companhia, nos dar muito mais tempo para uma boa
conversa.
* REVISTA BEIRA INTERIOR
/ AAUBI |