O triunfo do lixo
POR CORREIA DA FONSECA*
Por alturas do final de 99,
um pouco no lugar dos tradicionais balanços anuais por
sectores, a grande imprensa diária apregoou que aquele
havia sido o ano da definitiva vitória da SIC pois, como
um desses jornais titulou, a estação de Balsemão
/ Rangel "arrasara" a RTP. Arrasara-a, entenda-se,
em matéria de audiências: mais de 50 por cento contra
pouco mais de 20 por cento da RTP. Dir-se-á talvez que
as audiências não são tudo, até que
são pouca coisa. Não é pelo número
de leitores que se avalia o mérito de um livro, pela quantidade
de espectadores que se prova a qualidade de uma obra de teatro
ou de cinema. Nem sequer é pelo número de sócios
que se mede o valor de uma equipa de futebol, por muito que isso
pese aos adeptos do Benfica. Contudo, para alguns dos mais destacados
orgãos da imprensa portuguesa, se não para todos,
o volume da audiência da SIC demonstra inapelavelmente
a sua superioridade. Dado que a imprensa é supostamente
um lugar de lucidez e inteligência, o critério é
curioso.
E é curioso sobretudo porque todos mais ou menos sabem,
e nos jornais talvez melhor que em qualquer outro lugar, que
a vitória da SIC no plano das audiências foi conseguida
por anos consecutivos de exploração intensiva da
ignorância, do primarismo, do mau gosto e da boçalidade
que durante séculos de obscurantismo foram sendo inaoculados
no "bom povo português". O que a SIC vem fazendo
é exercer uma espécie de proxenetismo do estado
de desculturalização em que o País foi estrategicamente
conservado. Que a imprensa proclame o resultado dessa prática
como sendo uma proeza credora de cantos de louvor chega a ser
esclarecedor dos princípios que a animam. Ou da falta
deles.
Dir-se-á talvez, e com verdade, que nem tudo é
mau na programação da SIC. E também, com
verdade ainda maior, que quase tudo é medíocre
na programação da RTP. Quanto ao primeiro ponto,
porém, há que atender ao facto de todas as más
acções sentirem a necessidade de se cobrirem com
alguns gestos de virtude, sem esquecermos que o que lançou
a SIC para a liderança das audiências foram os "Big
Show", os "Ai os Homens!", os "Agora ou Nunca"
com aquelas inesquecíveis refeições de baratas
fritas e minhocas. Foi, enfim, o chamado telelixo.
Quanto à obstinada mediocridade da RTP, é certo
que existe, mas não vejo que a grande imprensa a denuncie
com o vigor que utiliza para festejar as audiências da
SIC. Creio que, no fundo, não se importa com ela, até
gosta. Porque lhe serve para a cruzada em favor da extinção
da RTP ou da sua privatização, que continua na
moda porque, bem se sabe, o que é privado é que
é bom, o que é estatal está sempre suspeito
de encobertos pendores marxizantes, pelo que à cautela
deve ser liquidado. Mas essa é uma outra história
que fica para uma outra vez.
* BEIRA IN / AAUBI |