Paulo Serra |
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Os pequenos eichmanns
A recente publicação
de partes significativas dos Diários de Adolf Eichmann,
pelo Diário de Notícias, confirma globalmente aquilo
que já se sabia acerca da justificação dada
pelo torcionário para o papel que desempenhou no extermínio
do povo judaico: "cumprir ordens dos superiores hierárquicos".
Eichmann, que era um burocrata genuíno, temente ao chefe
e à organização, limita-se aqui a utilizar
um argumento que, no dia a dia num hospital, numa escola,
numa repartição de finanças, numa câmara
municipal, num qualquer organismo estatal -, vemos repetido até
à enésima vez como justificação para
a ausência de solução (ou a solução
insatisfatória) do problema que apresentámos. Não
admira. Com efeito, "cumprir ordens dos superiores hierárquicos"
é, segundo a conhecida caracterização de
Max Weber, uma das características fundamentais da organização
burocrática, daquele tipo de organizações
com que permanentemente nos confrontamos no dia a dia (e em que,
eventualmente, desenvolvemos mesmo a nossa actividade).
Pelo menos à primeira vista, "cumprir ordens dos
superiores hierárquicos" apresenta uma dupla vantagem:
para a organização em si, na medida em que assegura
a cadeia de comando que faz da burocracia uma máquina
extremamente eficiente para executar determinadas tarefas prévia
e claramente definidas (as burocracias militares estão
aí para o provar); para cada um dos funcionários,
na medida em que, poupando-o à angústia de se interrogar,
de pensar e de decidir por si próprio, evita toda a indecisão
na acção, tornando-o uma peça perfeita da
máquina a que pertence. Consegue-se, assim, que o todo
e cada uma das partes funcionem de forma perfeita como
um relógio, diz-se. E, numa sociedade democrática,
o funcionamento destas máquinas (falo das estatais) deve
subordinar-se a uma e só uma finalidade essencial: servir
os cidadãos, dar resposta aos seus problemas e necessidades
(por isso mesmo se lhes chama "serviços públicos").
O problema é que, de forma quase generalizada, as organizações
burocráticas transformaram-se, nas nossas sociedades,
numa espécie de máquinas esquizofrénicas,
que funcionam mais para si próprias do que para o exterior,
que, e passe o pleonasmo, funcionam mais para funcionar do que
para servir os cidadãos. Quando os cidadãos criticam
"o peso da burocracia" (das organizações
burocráticas) é a este aspecto que precisamente
se referem: aquilo que devia ser um meio tornou-se um fim, aquilo
que devia ser a solução transformou-se no problema,
aquilo que devia facilitar é o que cria as maiores dificuldades.
O problema não é das pessoas é da
organização. Tenho conhecido muitas almas generosas,
prestáveis, atenciosas que, ao entrarem numa das organizações
burocráticas que acima referi se transformam repentinamente
em pequenos eichmanns, em pequenos ditadores burocráticos.
Longe de mim, obviamente, colocar em pé de igualdade as
acções menores desses pequenos ditadores burocráticos
e as acções horrendas de Eichmann (que era, segundo
parece, um marido dedicado e um pai extremoso). Pretendo, tão
só, reflectir sobre o facto de que, por detrás
de um e de outro tipo de acções está a mesma
atitude desresponsabilizante, o mesmo desprezo pelas pessoas,
a mesma sensação de impunidade. E, se o horror
extremo das acções de Eichmann é mais do
que suficiente para que, seja em nome de que ideologia for, as
tenhamos de recusar, já o mesmo se não se passa
com as acções do pequeno ditador burocrático
que, de tão pequenas, de tão repetidas,
de tão generalizadas, acabam por ser aceites por nós
como mais uma das fatalidades da nossa existência social
uma fatalidade tão "natural" como a chuva
e o sol, por assim dizer.
Essa aceitação é que é grave. |