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Paulo Serra
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Marx e os três pastorinhos
Até que ponto aquilo que se passou em Fátima nos
dias 12 e 13 de Maio - e em todas as fátimas deste mundo,
noutros dias de outros maios - cabe dentro da conhecida afirmação
de Marx segundo a qual a religião é o "ópio
do povo"? Até que ponto é justo afirmar, como
o faz Marx, que a religião faz o povo adormecer numa "felicidade
ilusória" (como terá dito Cristo, "o
meu reino não é deste mundo") que não
faz senão esquecer a exigência da "felicidade
real" neste vale de lágrimas em que vivemos? Por
um lado, não podemos esquecer que foi uma religião
- o Cristianismo - que introduziu a ideia mais perigosa e mais
revolucionária de todas: a ideia de que, sendo filhos
de Deus, todos os homens são iguais. Foi esta ideia que
levou os escravos romanos a lutar pela sua libertação,
que em grande medida orientou os homens da revolução
francesa, que inspirou as utopias socialistas, que - e esta não
é uma ironia menor - constituiu a grande bandeira do próprio
marxismo. Podemos mesmo dizer que, neste aspecto, o marxismo
não é senão a religião colocada de
cabeça para baixo: o Céu transposto para a Terra,
Deus transformado em César, o Papa substituído
pelo Secretário-Geral, os Evangelhos dando lugar ao Manifesto.
Em ambos os casos, a mesma crença inquebrantável,
a mesma fé que move montanhas. De facto, o marxismo não
foi apenas uma "religião", laica e ateia - ele
foi a maior "religião" do nosso século.
Mas então, a aceitarmos que a religião é
"o ópio do povo", temos de concluir necessariamente
que o marxismo, ao transformar-se em "religião",
se tornou no maior ópio do nosso século. Teria
Marx alguma vez sonhado este destino contraditório das
suas ideias?
Por outro lado, face a um conjunto de instituições
e de entidades políticas cada vez mais "pragmáticas",
cada vez mais maquiavélicas, cada vez mais alheias a valores,
cada vez mais erigindo como "valor" supremo o poder
pelo poder - é a esse processo que alguns chamam a "morte
das ideologias" -, a esperança de uma mudança
política e social verdadeira (isto é, a esperança
de uma "felicidade" possível já aqui
neste mundo) parece advir hoje, a muitos cidadãos, mais
da religião, das religiões como o Cristianismo,
do que propriamente da "política" e dos "políticos".
A figura de João Paulo II - uma figura agora frágil,
trôpega, como que vergada sob o peso do destino do Mundo
- é, neste aspecto, exemplar (mas não única):
qual é o político contemporâneo que contribuiu,
como ele, para as grandes transformações positivas
deste século?
Que Marx quisesse denunciar uma certa utilização
da religião - mas que não é exclusiva da
religião, podendo afectar qualquer doutrina ou ideologia
-, percebe-se. Que possamos continuar a defender, hoje, que a
religião é "o ópio do povo", percebe-se
menos. Como o comprova aliás a notável entrevista
que, a propósito de Fátima, o Bispo de Leiria-Fátima,
D. Serafim Ferreira e Silva, concedeu ao Diário de Notícias
de 13 de Maio de 2000... |
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