Um filme de
Lars
Von Trier
1996
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Ondas de paixão
POR
PEDRO JESUS
Admito que comecei por
me interessar pelo filme Ondas de Paixão (Breaking the Waves no original) muito
antes de o ter visto. Tinha consultado as críticas exaltadas
dos especialistas em cinema, os quais afirmavam que o filme era
revolucionário a nível técnico: o realizador
prescindira dos habituais planos em que a câmara está
ligada a um suporte e rodara as cenas com a câmara em cima
do ombro, conseguindo a proeza de acompanhar todos os passos
dos actores: por exemplo se o actor corria, o camaraman, ao
invés de o deixar escapar, corria atrás deste.
Lera ainda que a película abordava as emoções
humanas de uma forma totalmente descomprometida com questões
morais, ou com o conceito de happy end, e ainda que o argumento juntava as temáticas
mais insuspeitas: a religião e a fé com a sexualidade
ou as várias faces da violência. Dizia-se igualmente
que a prestação de Emily Watson era uma das mais intensas interpretações
de toda a história da sétima arte.
Perante todos estes bons augúrios, recordo que me dirigi
ao cinema, acompanhado de alguns colegas, com a expectativa de
também poder participar na revelação de
algo surpreendente. Lembro ainda que ao contrário do que
sempre se seguia ao filme, uma discussão sobre o que tínhamos
acabado de assistir, permanecemos, entre nós, em silêncio,
como se pairasse sobre nós a certeza de que uma referência
ao que tínhamos presenciado pudesse soar a sacrilégio. Ou talvez porque fosse
muito difícil encontrar as palavras certas para definir
uma obra que parece incluir um universo dentro de si, não
deixando manobras para a uma discussão, senão
num único ponto: ou se acredita ou não...
O filme confirmou tudo o que havia lido e revelou ainda o que
não é facilmente expresso em palavras: o poder
da fé e numa última instância - a força
do amor, que se sobrepõe à razão, ao conforto,
à auto-estima e... à própria vida.
A película é um muito bem-conseguido equilíbrio
entre a apresentação da personalidade de Bess O'Neill e o seu sequente calvário.
Lars von Trier, o realizador do filme, faz-nos "apaixonar"
por uma pessoa que é a essência da pureza, que ama
Deus e as pessoas, e que acredita que o amor é a força
maior. No momento que estamos rendidos à personagem, a
história inverte-se e Bess O'Neill terá de colocar
à prova a sua fé e tudo em quanto acredita.
O filme começa, nesse momento, a disparar perguntas em
todas as direcções: Existem limites para o amor?
Quem é que os estabeleceu? Qual o poder da fé?
Será possível encontrar Deus nas situações mais humanamente degradantes?
Serão os milagres possíveis?
As respostas vão sendo apresentadas ao longo das quase
três horas da película, com as temáticas
da fé, do pecado, da salvação, da metafísica
sempre presentes. Emily Watson consegue, nesta sua estreia cinematográfica,
uma representação que está nos limites do
sustentável, dando o rosto a uma das personagens mais
completas, frágeis e ao mesmo tempo, humanamente inquebráveis
da história do cinema.
A obra explora ainda outras questões, que enriquecem o
conjunto e tornam o filme numa referência absoluta: a ligação que Dodo (numa
brilhante interpretação de Katrin Cartlidge) estabelece
com Bess é profundamente comovente. Considero mesmo que
uma dos mais poderosas cenas cinematográficas a que já
assisti se dá quando Dodo interroga os anciãos
sobre a sua legitimidade no julgamento de terceiros.
É provável que se escreva aqui sobre um filme que
já terá sido visto por todos aqueles que lêem
este artigo e do qual, provavelmente, tiveram percepções
diferentes. Mas não podia deixar de falar sobre o filme
que até hoje me tocou mais profundamente, que mais me
fez questionar e que, legitimamente, se tornou no filme da minha
vida. Como é arriscado proceder a escolhas deste tipo,
justifico-me com a constatação de que nenhuma outra
obra me deixou tão maravilhado e ao mesmo tempo, tão
inconformado, "obrigando-me"
a rever o filme uma série de vezes, sem que a magia se
tenha esvanecido um milímetro sequer. Sei ainda que tudo
que se possa escrever sobre o filme fica muitíssimo aquém
do milagre que a obra encerra.
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