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Magritte
e os Lagartos no Céu
POR LUÍS NOGUEIRA

Que podemos nós dizer de alguém que sobre a sua obra fala, juntando absurdo e ousadia, desta forma tão ambígua e simultaneamente clara: "os lagartos que vemos nas nossas casas e nos nossos rostos, eu acho-os mais eloquentes no céu"?
Pode não ser esta frase, proferida pelo próprio pintor, suficiente para resumir a lógica (ou melhor, o desvio da lógica) que atravessam o trabalho deste ilustre surrealista belga. Mas será com certeza um óptimo ponto de partida (talvez, circularmente, se transforme também num momento de chegada) para perceber que o visionarismo que o caracteriza só pode ser interpretado se deixarmos os seus quadros entregues ao absurdo e, se não ao silêncio, pelo menos ao espanto e à incapacidade de certificação. Ou seja, aceitarmos o seu agudo sentido poético.
Se falamos de visionarismo é porque aceitamos, aqui, que visionário é aquele que, qual xamã, penetra sob as evidências, vai além delas, desconfia dos objectos e das formas, reapropria-os, desconstrói-os, e, ao representá-los, lhes atribui uma nova identidade sem para que tal seja necessário torná-los irreconhecíveis. Pelo contrário, no caso de Magritte, os objectos permanecem sempre enquanto tal: uma janela, um charuto, uma maçã, uma casa, objectos, meros objectos, mas que, recolocados que são em novos contextos semânticos e semióticos, ganham inauditas propriedades e significados.
Não é nada singular esta reatribuição de sentidos a objectos comuns basta pensar em Duchamp e nos dadaístas. O que fundamenta então a singularidade de Magritte? Em primeiro lugar, o sentido de humor: é impossível não soltar um sorriso perante a irracionalidade quase abusiva da maior parte das suas obras. Depois, e intimamente relacionado com o humor, vem o espanto, um espanto que perturba porque descobre a gargalhada onde, por norma, está visível apenas o trivial. Em terceiro lugar, a ironia, como se cada lugar, silhueta, perspectiva ou contorno fosse matéria que deve ser inquirida, experimentada ou reflectida. Digamos mais simplesmente: como se a vulgaridade das coisas que não são mais que coisas estivesse mesmo a pedi-las... Mas a pedir o quê? A pedir um banho de absurdo, a pedir para serem desveladas, para se tornar enigma e ansiassem pela visão e a mão do artista para nos porem a rir ou desconcertar.
O ar burguês que o chapéu de coco e o fato lhe emprestavam também não carece de alguma ironia: nesse uniforme vulgar, Magritte vestia a indumentária dessa classe que, consta, dizia detestar (e não temos motivos para duvidar, como subliminar ou claramente deixam adivinhar algumas das suas obras). Esse aspecto de homem comum escondia o escândalo do seu visionarismo. Da mesma forma, ironicamente, a sua obra, a obra de um dos mais famosos representantes de uma ideologia contra-cultural e provocatória, o surrealismo, está disseminada e apropriada pelas indústrias da cultura, anonimamente fruída pela common people, como se, definitivamente e inevitavelmente, o humor e o espanto fossem anseio e alimento das massas. Como o provou o próprio pintor que, em certa fase da sua carreira, laborou na publicidade. E assim, nos logotipos e t-shirts, puzzles, gravatas e demais gadgets, continuam a passear-se, descomprometidos e misteriosos, os lagartos celestes.

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