. |
|
.
Edmundo Cordeiro
|
A Reclamação
Não acham de mais que quem nasceu numa casa - vá
lá - sem biblioteca e sem casa de banho, que quem passou
a infância a fazer as suas necessidades num palheiro, atrás
do gado - a maioria dos portugueses com mais de trinta e cinco
anos, para arredondar - se venha preocupar com a cultura-da-exigência,
quer dizer, se irrite com o desleixo dos vizinhos? Eu também
acho. O que é um passeio cheio de caca de cão,
cheio de pequenos e grandes objectos gordurosos, despreocupadamente
esburacado, com automóveis abandonados em cima, ferrugentos?
O que é ser muitas vezes apanhado por uns pinguitos de
empenhada cuspidela? O que é andar aos tombos pendurado
num autocarro conduzido por um shandy dos ralis e sair de lá
tonto de todo? O que é ver chapas de zinco a servir de
tecto a varandas em ruas normais? O que é ver os matagais
nos cruzamentos de ruas normais, onde se depositam os caixotes
de papelão e os electrodomésticos estragados, apanhados
de quinze em quinze dias pelos da Câmara? O que é
querer beber um cafézito e ser atendido por um tipo-o-que-é-queres-pá-desaparece,
com nódoas na camisa e o cabelo grande empastado de gel?
O que é pagar agradecidamente? O que é cair-nos
em cima, permanentemente, quer o mistério quer a suspeita,
quando publicamente se procura tratar das coisas mais naturalmente
práticas e mais artificialmente práticas, seja
de uma vacina ou da declaração dos impostos? O
que é tudo isto? Isto é nada! Mas são preocupações,
pronto! Mesmo que horrivelmente arrivistas!
Não
sei. Não serão antes inquietações
- uf! - pequeno-burguesas, egoístas, alarves, do mais
boçal que há, tipo deixa-me cá acelerar
o passo para que não cheguem primeiro à bicha do
atendimento pró Cartão de Residente? Se calhar
são.
Entre os que não precisam de reclamar e os que não
podem reclamar, quem verdadeiramente sofre as favas são
os reclamam e os que têm vontade de o fazer, isto é,
todo e qualquer arrivista como eu que, no fundo, aspira a não
precisar de reclamar
Não há nada de elevado
nisto. Nem que seja por uma inclinação de espírito:
incapacidade de ser estritamente independente, cobardia essencial
de não ser feliz. Ela é sempre recalcada: parece
muito importante estar preocupado. Os que reclamam e os que têm
vontade de reclamar são os que não têm coragem
de ser felizes
Ora toma! Não aguentam a pedalada.
Começam então, os rezingas de ordenado médio,
a chatear-se e a chatear os outros, a chatear todos os que são
iguais a eles, seja com o ambientalismo, seja com as acessibilidades
- que palavra! -, o desenvolvimento, o sistema de ensino, seja
com a vergonha por os portugueses, esses malandros, há
cinco séculos atrás se terem feito ao mar, por
terem, esses malandros, feito mal - mal e bem -, já não
digo à humanidade inteira, mas a algumas criaturas
seja com a iliteracia, com a SIC. Irra! Vão mas é
ler o Expresso depois de almoço para o alpendre da casa
de campo! Os outros
os outros mandam, ou fazem revoluções. |
|
|
. |