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Digressões

por E. Segre*

Convidado pelo autor desta tão oportuna iniciativa a contribuir com algum assunto de Física, considerei com meus botões: falarei das últimas e desconcertantes descobertas da Física, que põem em questão algumas das suas melhor assentadas convicções? Ou de alguma surpreendente aplicação tecnológica, das que desfilam nas páginas de Physics World ou Physics Today?
Ou então da relativa apatia que tudo isso parece incapaz de sacudir do público (incluindo aí muitos dos nossos próprios alunos)? Resolvi imprudentemente aventurar-me no terreno cultural no qual se inscreve a Física, o que me obriga a aflorar essas questões todas, e ainda a espinhosa questão das relações entre as ciências humanas e as exatas: terreno minado, de se pisar com cuidado, quase campo de batalha, tais as clivagens que se operam entre as "duas culturas" (como diria C.P. Snow, que militou em ambas), e tais os ventos de cizânia que nele sopram, quiçá insuflados...
A contemplar os retumbantes sucessos da Física, poderíamos, parafraseando Nietzsche, perguntar: "porquê é ela tão inteligente?" De forma mais modesta, Einstein confessou a sua ignorância: para ele a coisa mais inexplicável acerca da Natureza era o fato de poder ser explicada... Mais concretamente: por que cargas d'água se dobra a Natureza às nossas formulações matemáticas?
Sir Arthur Eddington, astrofísico - primeiro a observar, durante um eclipse, que os raios de luz provenientes das estrelas distantes se encurvavam ao passarem junto ao Sol, numa vênia à teoria da Gravitação Relativística de Einstein, e autor de algumas enigmáticas elocubrações numerológicas acerca do Universo - Eddington sorria dessas perplexidades. Para ele o homem reencontra no Universo o traço das suas próprias teorias. E, à maneira de Robinson Crusoé na sua ilha deserta, arregala os olhos ao deparar, na praia, com as suas próprias pegadas...
O ilustre britânico não nos explica porém de que maneira projeta o homem - e "homem" é, para mim, sinónimo de ser humano, não vá eu atiçar, a par doutras, a ira feminista... - de que maneira, dizia eu, projeta ele as suas estruturas matemáticas sobre a Realidade.
Se nos elevarmos até as alturas da Metafísica, iremos decerto encontrar vozes em sintonia com a de Eddington. Para o idealismo hindu, o Universo é um simples produto da mente . Porisso não há, desde esse ponto de vista, nenhuma parcela da chamada matéria - e onde estará o físico que saberá explicar-nos o que entende por esse termo?- que não participe da Consciência, que não seja Consciência.
Se assim for, e não serão nem os gregos da Hyle universal nem os escolásticos das materiae prima et secunda a discordar, por que avatares chegaram os físicos à sua matéria inerte, objetivada, sobre a qual exercem, com virtuosismo, os seus talentos teóricos e práticos?
Mircéa Éliade , apesar da sua regularidade acadêmica, não hesita em responder que isso se tornou possível por uma progressiva dessacralização do mundo e da Natureza. É interessante observar que as ciências humanas, incapazes de resistir à maré montante da "coisificação" do mundo, antes aliando-se-lhe timidamente de início, cada vez mais desabridamente depois, tampouco puderam ou quiseram impedir que o próprio homem fosse coisificado, transformado em produto fisico-químico-biológico de uma evolução mecânica. Essa tese pode-se dizer que constitui a pseudo-religião dos tempos modernos, e é divulgada insistentemente por todos os meios . O que quer que pensemos do pensamento dos antigos - e há aí certamente muito que descartar, sobretudo no que tange ao conhecimento dos fenômenos - a pobreza da Weltanschauung contemporânea pode explicar o relativo desencanto do público para com as ciências , bem como a devastação da Natureza e a indiferença para com a sorte dos nossos companheiros de existência terrena.
Não deixa de ser curioso que hoje certos representantes das ciências humanas procurem "virar o feitiço contra o feiticeiro". Tendo adotado a perspectiva que eu chamaria, tentativamente, de objectivista - a ponto de a Sociologia e a Psicologia andarem carregadas de Estatística e apelarem para mecanismos análogos às "forças" físicas - os representantes dos "Science Studies" procuram reduzir as ciências exatas a meros produtos do meio social ambiente. Este último avatar do desenvolvimento cultural do Ocidente , na minha opinião verdadeira perversão epistemológica, tem suscitado controvérsias às vezes duríssimas, fazendo descer à arena figuras como Steven Weinberg ( prêmio Nobel de Física). De ambos os lados entrincheiram-se representantes das ciências humanas e das exatas.
Haverá outros indícios mais sérios da existência de algo podre no reino da objetificação científica? No passado deram muito que falar o princípio da "incerteza" de Heisenberg e o papel que parece desempenhar o observador em certas formulações da Física Quântica. O desconhecimento da Física tem inspirado as ilações mais fantasiosas. Na contemporânea Babel filosófica, Relatividade e Física Quântica mal digeridas tornaram-se pedreiras inesgotáveis para as mais ousadas construções intelectuais.
O que talvez se possa afirmar, enquanto se aguardam os desenvolvimentos das Teorias de Supercordas, com que a Física se prepara a continuar a assombrar-nos, é que o paradigma do realismo local está a ser posto em questão. Expliquemo-nos. O realismo, propugnado por figuras como Einstein e Schrödinger, admite como evidente que uma partícula carrega consigo desde a sua criação as suas características, tais como velocidade e spin. Para modificá-las, é necessária uma interação, e esta fica submetida aos princípios da Relatividade: não pode produzir-se mais rapidamente do que a propagação da luz no vácuo ( caráter local). Ora a Física Quântica parece contradizer esse paradigma. A polêmica a respeito vem desde os primórdios do estabelecimento desse ramo científico, acesa que foi por Einstein, Podolski e Rosen num artigo célebre, que provocou uma resposta igualmente célebre do general comandante do outro campo, Niels Bohr. A questão permaneceu a nível filosófico até que John Bell propôs um teste experimental da mesma. Esse e outros que vieram a ser propostos, cada vez mais refinados, o último dos quais vem reportado em Physics World do mês de Março último deram respostas experimentais a favor da Mecânica Quântica tal como é concebida pela chamada escola de Copenhague, cujo prócer era Niels Bohr. Há quem conteste essas conclusões porém, até mesmo no departamento de Física da UBI...
Diga-se imediatamente que, mesmo que as hipóteses do realismo local venham a cair, isso não trará em hipótese alguma água ao moinho dos vários misticismos que turvam o pensamento contemporâneo. Pode porém levar a uma concepção do Universo como um "tecido sem costuras" , onde "tudo tem relação com tudo". Aguardemos o que irão dizer as teorias chamadas de "Supercordas" e as demais tentativas de conciliar a síntese geométrica de Einstein com a imprevisibilidade quântica. O departamento de Física da UBI estará atento e não deixará de contar-vos as novidades.
Entrementes, pergunto se os temas aqui aflorados já não dão suficiente pano para vestir alguns dos projetados Serões da UBI, que a Reitoria espera ver renascer. Se tal for a opinião dos colegas, particularmente os das Ciências Humanas, poderíamos organizar mesas redondas abertas ao público, quiçá precedidas de uma introdução musical, e que poderiam vir a constituir bons hábitos da comunidade serrana...

*Departamento de Física da UBI

1) Vide, p. ex., Arthur Avalon, The World as Power, Ganesh & Co, Madras, Índia. Trad. italiana: Il Mondo come Potenza, ed. Mediterranee.

2) "El Cosmos era una hierofanía, y al estar sacralizada la existencia humana, el trabajo implicaba un valor litúrgico que aún sobrevive oscuramente entre las poblaciones rurales de la Europa contemporánea. Importa particularmente subrayar la posibilidad ofrecida al hombre de las sociedades arcaicas de insertarse en lo sagrado, mediante su calidad de homo faber, de autor y manipulador de herramientas." Herreros y Alquimistas, Alianza Editorial, Madrid, pg. 127.

3) Vide, p. ex., Ervin Laszlo, Evolução - a Grande Síntese, col. Epistemologia e Sociedade, ed. Instituto Piaget, obra eivada, na minha opinião de afirmações, no mínimo, discutíveis.

4) À parte alguns sobressaltos causados pelos feitos mais espetaculares: viagens espaciais, clonagem, etc., que fazem rufar os tambores mediáticos. O interesse do público assume às vezes contornos cômicos. Uma senhora amiga minha estava preocupadíssima com as presumíveis dificuldades dos astronautas em ir à casa de banho; um jovem oficial da Força Aérea Brasileira, assistindo ao filme de uma viagem na "space shuttle", no decorrer de uma conferência, deparou com uma astronauta na tripulação. Imediatamente quis saber se era possível fazer amor no espaço.

5) Trata-se ainda de cultura, ou melhor seria falar de civilização, no sentido spengleriano dos termos?

6) Vide, p. ex., Steven Weinberg, Une vision corrosive du progrès scientifique, La Recherche, Março de 1999, pg. 72.; Alan Sokal e Jean Bricmont, Imposturas Intelectuais, ed. Gradiva, 1999; K.Windschuttle, The Killing of History, ed. The Free Press, de um lado. E, do outro, o físico Jean-Marc Lévy Leblond e o sociólogo Bruno Latour, em vários artigos na mesma revista La Recherche (órgão do CNRS francês), e todos os "relativistas culturais", na esteira de Popper, Kuhn, Lakatos, Feyerabend,...

7) Para citar um exemplo recente, um ensaio recente da revista Visão informa-nos de que "A grande novidade trazida pelos movimentos de mulheres a partir dos anos 60 é a convicção - corroborada, de resto, pelas teorias científicas da Física, por exemplo - de que o sujeito é veiculado na observação do objecto" (itálicos meus). Em Física, a observação do objeto não "veicula" o observador. Na linguagem atual desta disciplina, o ato de observação, que pode ser realizado por uma máquina, e geralmente o é, lança o sistema microscópico num dos seus estados possíveis. Para outros exemplos desse tipo de mal-entendidos, alguns positivamente fantásticos, vide Sokal. op. cit.

8) Essa foi e ainda é uma das polêmicas mais interessantes da Física. John Bell, que despoletou o processo, teria aparentemente preferido que a resposta fosse favorável a Einstein e aos realistas locais. Vide a propósito J. S. Bell, Speakable and Unspeakable in Quantum Mechanics, Cambridge University Press, 1987.

9) Essa expressão pode ser encontrada no livro de Z'ev ben Shimon Halevy, Adam and the Kabbalistic Tree, ed. Samuel Weiser Inc., N.Y.






 
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