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Pornografia digital
e controlo das aparências

"São principalmente os olhos que espelham as nossas agitações secretas (...) O olho pertence à alma mais do que a qualquer outro órgão; parece que a toca e que participa de todos os seus movimentos; exprime as emoções mais vivas e as paixões mais tumultuosas, tal como os movimentos mais doces e os sentimentos mais delicados; transmite-os em toda a sua força e com toda a sua pureza tal como nascem; transmite-os pelos traços rápidos que têm numa outra alma o fogo, a acção, a imagem daquilo que falam. O olho recebe e reflecte ao mesmo tempo a luz do pensamento e o calor do sentimento; é o sentido do espírito e a língua da inteligência. A vivacidade e o langor do movimento dos olhos constituem um dos principais caracteres da fisionomia".

Buffon

Benevolente leitor,

Por um daqueles desvios em que o método é tantas vezes fértil, vejo-me na obrigação de proceder a uma translação de uns quantos graus e a mudar imediatamente de assunto para te falar antes da peculiaridade de espírito do coleccionador nos dias que passam. Em concreto, do que há de particular no modo como o seu olhar e a sua acção timidamente se dirigem ao programa tecnológico das imagens e do modo como o seu gesto presta honras a Mnemósine, a benfazeja e a de imprevisíveis dádivas musa das reminiscências; para te falar, enfim, da identidade civil e da fisiognomonia bárbara do coleccionador; da estátua, em aço, que ainda lhe não foi feita; do efeito, frio, dos seus actos; da graça que há na sua desgraça ... Donde que talvez houvesse mais de convir, para pedante título desta prosa, algo assim como A memória de fisiognomonista do coleccionador.
Mas, perguntar-te-ás tu, "hipócrita leitor, - meu igual, - meu irmão!" o que foi que me levou, assim de súbito, a tamanho desencontro? E perguntas bem. São, porém, simples as razões deste aparente extravio. Tudo se deve a uma ligeiríssima - e repito o a uma ligeiríssima - deslocação do lugar reservado a um livro nas prateleiras das estantes da minha biblioteca.
Para melhor me fazer entender, abro aqui um breve mas necessário parêntese histórico e cultural (como bem o sabes, benévolo leitor, os parênteses são aqueles sinais que caem das pestanas dos escritores) onde resumirei a lendária vida e obra de Aby Warburg, bizarro historiador de arte e doente mental, durante intermitentes mas quase sempre longas estadias internado na reputada casa de repouso, em Kreuzlingen, do não menos afamado médico dos nervos (digamo-lo assim) Ludwig Biswanger. É certo que também já me chegou aos ouvidos a notícia de que o filósofo francês Michel Foucault teria frequentado as consultas de este último, embora não tenha podido, até ao momento, apurar de que doenças ambos falaram.
A constituição da sua biblioteca ocupou Warburg durante toda a vida. Pode, sem exagero, afirmar-se que a sua verdadeira obra - para além de alguns esporádicos, fragmentários e sempre inacabados ensaios no domínio de uma disciplina que, ao contrário de tantas outras, existe, mas que, ao que parece, não possui ainda nome - é a Biblioteca Warburg, exactamente a sua biblioteca. Escusado será dizer que a Biblioteca Warburg é uma obra fora do catálogo. E que o próprio livro já foi folheado por imprudentes e imundas mãos.
No início da constituição de esta biblioteca, está uma simples brincadeira de crianças que mais tarde acabaria por se tornar decisiva: aos treze anos ("nº13 - Treize - j'eus un plaisir cruel de m'arrêter sur ce nombre", Marcel Proust), Aby, que era o filho mais velho de uma família de banqueiros judeus, ofereceu ao seu irmão mais novo, Max, a prerrogativa de este ficar com os direitos de morgadio em troca da promessa de este lhe comprar todos os livros que aquele quisesse. Max aceitou imediatamente, mas longe, muito longe estava Max de imaginar que aquela blague de crianças haveria um dia de se tornar realidade.
Prepara-te pois, benevolente leitor, agora que nos aproximamos do alto mar, para ouvir o que se segue: Aby Warburg classificava os seus livros não segundo uma ordem alfabética ou numérica, como é usual fazer-se nas grandes e reputadas bibliotecas, mas exclusivamente em função dos seus interesses e do seu peculiar sistema de pensamento, ao ponto de mudar sempre a ordem dos livros a cada variação dos seus métodos de procura. E à lei que guiava o seu princípio de arrumação chamava ele "lei de boa vizinhança", lei essa que predestinava que a solução de um determinado problema estivesse contida não no livro que ele procurava, mas no livro que se encontrava justamente ao lado do livro procurado. Assim procedendo, fez Aby da biblioteca uma espécie de imagem labiríntica de si mesmo, abissal espectro de múltiplos caminhos com um horrível poder de fascinação, quando não de um temível torpor hipnótico.
Um sinal inequívoco do que acabei de te dizer é a conhecida anedota narrada por Saxl, reputado historiador de arte, que tem Ernst Cassirer, o homem da Filosofia das Formas Simbólicas, por protagonista, Teseu ou vítima: encontrando-se Cassirer, pela primeira vez, na biblioteca, e não tendo ainda dado mais passos do que aqueles a que a antecâmara o obrigava, logo ali declarou que, ou bem que daquele lugar se deveria fugir imediatamente, ou bem que livremente se deveria consentir em ficar por lá fechado por muitos e muitos anos... Tal qual um autêntico labirinto, ou "palácio do machado de dois gumes", a biblioteca de Warburg conduzia o leitor ao seu destino transportando-o de um "bom vizinho" a um outro por intermédio de uma série de desvios no fim dos quais o leitor fatalmente se depararia com o Minotauro que, como é bom de ver, o esperava já tranquilamente desde o início e que era, num certo sentido, o próprio Aby Warburg. Ao que consta, todos aqueles a quem foi acometido o fado de aí trabalhar sabem quanto tudo isto é ainda hoje verdade, apesar das contrafeitas concessões entretanto prestadas às exigências daquela respeitável ciência que dá pelo nome de biblioteconomia.
Aqui entre nós, parece que Aby Warburg sofria de paranóia. Chegou mesmo a converter os médicos ao seu delírio quando lhes propôs que o deixassem sair da casa de repouso mediante a prova da sua cura a julgar e a aferir pelo valor científico de uma conferência, que ele mesmo proferiria e dirigiria aos outros doentes dos nervos com ele internados. O tema da conferência foi o seguinte: "O ritual das serpentes dos índios da América do Norte". Warburg, esse, claro, foi aprovado com distinção e louvor e ... saiu.
Se menciono tudo isto, benevolente leitor, é porque o título deste relato, Pornografia digital e controlo das aparências, exigia que a obra The Politics of Pornography do senhor R. J. Rushdoony estivesse no sítio certo, de acordo, portanto, com a acima referida "lei de boa vizinhança" da qual me declaro, desde já, um fiel seguidor. O livro estava no sítio certo, é verdade. A solução para o problema que, sob tal rubrica, me atrevera a tratar é que não. Estava, exactamente, no livro ao lado. É claro que não vou, benevolente leitor, revelar-te agora o título da obra em questão e estou certo de que facilmente compreenderás o porquê. Com a tua permissão, passo, por conseguinte, ao lado.
Ao contrário dos animais, o homem procura constantemente apropriar-se da sua aparência e, na medida em que anseia por se reconhecer, separa as imagens das coisas e dá-lhes um nome. A aparência inquieta-o profundamente porque a exposição do rosto, sendo o lugar da verdade, é também o lugar de uma simulação e de uma impropriedade constitutiva. Assim, o que no rosto se expõe e o que no rosto se dissimula constitui o lugar ínfimo e o lugar último da política. Qualquer manual de civilidade - cristã, gentia, ou "pós-moderna" - o atesta: é conveniente compor o rosto em conformidade com as circunstâncias em que nos encontramos e de acordo com o carácter das pessoas com quem conversamos. Como tal, dizer, por exemplo, que o rosto fala e que a revelação do rosto é a revelação da própria linguagem, equivale a admitir que é o rosto que está no centro das percepções que cada um possui de si mesmo e de outrem, e que é nele que se mostram todos os rituais e correspondentes formas políticas de controlo do que se usa chamar a sociedade civil. "Perder a face" não significa aqui outra coisa que não ser expropriado da sua aparência, alienar e separar a pura comunicabilidade do rosto de si mesma, perder, enfim, as benesses da livre cidadania, o livre jogo da aparência trazida à própria aparência.
Mas o que se passa, afinal, perguntarás tu, com a pornografia, e logo com a pornografia digital? Bom, a pornografia representa 68% da actividade comercial da Internet (atenta, benevolente leitor, à curiosa proximidade entre este valor e o modo como a totalidade de modalidades de relação sexual se queda, matematicamente, nas cercanias do soixante-neuf, não havendo, portanto, lugar a séries transcendentais).
Em 1997, nos Estados Unidos da América, aprovou-se uma lei intitulada Communication Decency Act, lei essa que outorgou poderes ao governo federal para perseguir e proibir os conteúdos pornográficos na rede. Assistiu-se então a uma longa e árdua discussão semântico-jurídica na qual se procurava estabelecer se a Internet deveria ser considerada como um meio impresso, protegida, portanto, pela Primeira Emenda da Constituição, ou como um meio de difusão que, à semelhança da televisão, seria controlável pelo governo. Contra o disposto no Communication Decency Act, e nesse mesmo ano, o Supremo Tribunal norte-americano sentenciou que a rede das redes não podia ser censurada e que o conteúdo das suas mensagens estava protegido pela Primeira Emenda. Em qualquer caso, dispomos hoje de uma anedota que revela, melhor que qualquer outra coisa, todos os equívocos contidos neste assunto: quando, nos Estados Unidos da América, se discutiu a lei contra a pornografia, um servidor da Casa Branca bloqueou de imediato o seu texto porque o seu programa detectou uma palavra proibida pelo sistema - pornografia.
Em Peeping Tom (1960), uma película do cineasta britânico Michael Powell - verdadeiro hino ao snuff cinema, género onde convergem o filme de terror (popular e permitido) e o hard core (popular e proibido) -, um jovem realizador mostra os rostos das suas modelos-vítimas femininas no momento em que estas são violadas e assassinadas com uma espada para o efeito acoplada à câmara.
Tal como na distorção facial e labial que ninguém, melhor do que Bernini, soube expressar ao esculpir o êxtase místico de Santa Teresa, também na pornografia o rosto humano é o lugar de uma exposição irremediável e desprotegida do corpo e, enquanto tal, o espaço de inscrição onde se dá a expropriação da linguagem e o subsequente controlo da aparência. Nos actores porno, a consciência de estarem expostos ao olhar manifesta o carácter não substancial (expropriável) do rosto humano: de cada vez que os seus olhos procuram explicitamente a objectiva e assim obrigam o suposto espectador-voyeur a olhá-los directamente nos olhos, reiteram o paradoxo de que quanto mais denunciada é a falsificação tanto mais verdadeira ela aparenta ser. A plena ostentação da ilusão torna a imagem mais verdadeira. O mesmo se passa com a publicidade - tanto mais performativa quanto mais pornográfica. É por isso que, entre um plano de uma ejaculação no rosto da actriz (medical shot), que autentifica documental e fisiologicamente a acção e que constitui um gesto de posse e de domínio, uma vez que a marcação do seu território facial é apresentado como um signo animal de assenhoreamento, e a imagem de um anúncio a um champô, a um refrigerante ou a um iogurte, não existe qualquer diferença.
Do rosto, que é um gesto que impropriamente toma o nome de "cara", afirmou certa vez o grande fisiognomonista Johann Jacob Engel:"O rosto é a principal morada dos movimentos da alma e os gestos tomam o nome de fisionomia". Repara agora, benévolo leitor, como ele é magistralmente figurado por Franz Rosenzweig:"Tal como a estrela reflecte os seus elementos nos dois triângulos sobrepostos e a coesão dos elementos numa via, também os órgãos do rosto se dividem em duas camadas. Pois os pontos vitais do rosto são aqueles onde ele entra em conexão com o mundo exterior, quer enquanto activo, quer enquanto receptivo. Os órgãos receptivos compõem a camada de fundo, por assim dizer, as pedras de construção de que o rosto é feito: fronte e face. Às faces pertencem as orelhas, à fronte o nariz. Orelhas e nariz são órgãos de pura recepção. Por cima deste primeiro triângulo elementar, formado pelo centro da fronte como ponto dominante de todo o rosto e pelos pontos medianos das faces, estende-se um segundo triângulo que é composto pelos órgãos cujo jogo expressivo anima a máscara rígida do primeiro: olhos e boca".
É evidente que na pornografia e na publicidade são os olhos e a boca que estão em primeiro plano. O controlo das aparências exige a amputação temporária de um dos triângulos e é aqui uma necessidade induzida pelas sofisticadas tecnologias de produção de consumo. Porém, é apenas no jogo entre o plano activo e o plano passivo, entre a forma e o fundo, que se dá e constitui a inteireza da vida do rosto, uma vida que, quando não é mutilada, se apresenta como a apoteose da simultaneidade das faces, como um esboço cubista do esplendor do rosto. Não por acaso, dizia Quintiliano que o rosto é também capaz de gestos que dão a entender o contrário daquilo que indicam. Assim, o constrangimento alegórico contido em tais esgares, potência de (des)controlo das aparências, seria o equivalente daquilo a que, na linguagem, se chama solecismos, pequenos e, às vezes, dependendo dos casos, atraiçoantes ou providenciais erros de sintaxe:"É muito estranho", observou certa vez a actriz porno Sharon, "que só me tivesse dado conta de tudo aquilo que um orgasmo implica no dia em que tive um em plena rodagem... E disse para comigo: Ufa! Como isto foi forte! E depois senti-me envergonhada, como que vulnerável... Então pensei: Chiça penico, estes rapazes têm que se vir a toda a hora!" (The Film Maker's Guide to Pornography, Steven Ziplow).
E porque esta já vai longa, aceita agora, benevolente leitor, as minhas desculpas por aqui me quedar. E ainda por não ter , como te o prometera, passado ao lado.






 
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