O
estranho mundo dos
media
A questão
põe-se nestes termos: será que se justifica a existência
de um serviço público de televisão numa
altura em que tudo parece mudar no panorama dos media, verificando-se
que a RTP se revela incapaz de ganhar eficácia egarantir
padrões mínimos de qualidade, para além
daqueles que resultam de uma RTP2 imoderadamente elitista ?
Gostaria de começar por aqui: sou dos que penso que não
podem ser nem o Estado nem os anunciantes e programadores de
meios das agências publicitárias que devem decidir
o que é mais importante para cada um de nós em
cada momento: essa é a nossa escolha. Infelizmente, as
nossas escolhas estão longe de ser sempre livres ou racionais.
São simplesmente humanas e ditadas pelas circunstâncias.
O grande problema das discussões entre adversários
e partidários do serviço público é
que quase sempre estão contaminadas por dicotomias rígidas,
argumentos unilaterais e generalizações reducionistas,
servidas com o peso de uma argumentação gongórica.
Infelizmente, os intelectuais, os académicos e os jornalistas
não são imunes a esta tendência aparente
simplificadora que muitos julgam exclusiva dos adeptos do Benfica
e do Porto. Passemos os olhos por alguns exemplos que demonstram
que a discussão está inquinada
2. Para os defensores
do serviço público, as televisões comerciais
são intrinsecamente niveladoras do gosto, limitando-se
a visar o lucro fácil. Para os adversários do serviço
público, qualquer proposta no sentido de garantir o acesso
das várias correntes de gosto ao espaço público
dos media é uma atitude elitista, que visa impedir os
espectadores de fazerem uma escolha livre a qual se manifesta,
apenas, através do mercado.
Esquecem os defensores do serviço público que este
generalizou muitas das vezes uma informação cinzenta
e governamentalizada e uma programação que acolhia
o paternalismo cultural dos burocratas que, em muitos casos,
gravitam, ao seu redor. Esquecem os adversários do serviço
público que nem todos os gostos privados são legítimos,
apenas pelo facto de suscitarem a adesão da maioria.
Para os adversários do serviço público,
o único critério que vale é o nível
das audiências, pois, em democracia, devem ser as maiorias
a decidir. Respondem os defensores do serviço público
que muitos dos programas veiculados pelos mass media são
objecto de um consumo passivo que não assegura a verdadeira
escolha. Fingem os primeiros ignorar o facto de que as escolhas
regidas pelo livre jogo das forças de mercado também
não são absolutamente livres. Desde logo, não
são os cidadãos nem os consumidores que ditam as
grelhas de programação. Há alguns anos atrás,
as televisões privadas francesas decidiram começar
a incluir nas suas grelhas programas destinados aos "intelectuais
elitistas". A razão era simples: é que os
"intelectuais elitistas" eram sensíveis à
publicidade dos objectos caros que eram comprados nesses programas
enquanto as "massas" não faziam corresponder
os seus níveis de adesão aos seus níveis
de aquisição. Ou seja, as "massas" eram
livres para verem mas não eram "livres" (leia-se
abonadas) para consumirem .
Esquecem os segundos - defensores do serviço público
- que a distinção entre "cidadãos"
e "consumidores" é meramente analítica,
servindo de referência para atitudes nem sempre fáceis
de distinguir. Um consumidor tem direitos, pode defendê-los
de modo activo e protestar contra a forma grosseira como eles
são objecto de manipulação por parte de
publicidade enganosa. Ao invés, um cidadão, no
exercício activo da sua cidadania, pode ser motivado por
por atitudes irracionais e consumistas.
Finalmente, procura-se reduzir o problema do "serviço
público" a um problema de gosto. Os defensores do
serviço público seriam elitistas ou iluminados,
consoante a apreciação de quem os catalogasse.
Os adversários seriam populistas ou sintonizados com
os verdadeiros gostos das massas, consoante a claque a que pertencesse
o catalogador.Também aqui o bom senso obriga à
moderação. Em Portugal, cai-se muitas vezes em
duas formas distintas de elitismo: os "consumidores médios"
de televisão só gostam de talk shaws, de novelas
e de artes marciais. Os intelectuais são todos um bando
de chatos e de moralistas que esperam pelas três da manhã
para verem um filme cuja fruição plena só
é compreensível por eles próprios e mais
dois.
Os defensores do Estado acreditam que os intelectuais detestam
o entretenimento. Os liberais acreditam, de modo paternalista,
que as massas, nunca por nunca, se poderão deleitar com
entretenimento inteligente. Ao fim e ao cabo, parecem dizer
a mesma coisa.
Por detrás de tudo isto, esconde-se uma outra crença:
o que é público, é digno, tem a ver com
a cidadania e com a partilha dos grandes valores universais e
democráticos. O que é privado é grosseiro,
pertence ao universo doméstico e perturba a sensibilidade
fina do gosto aceite. Penso que que esta distinção
dicotómica serviu para ocultar décadas de dominação.
Qualquer que seja a apreciação dos critérios
de qualidade da programação comercial das televisões
privadas, não se pode ficar indiferente ao facto que
as chamadas estórias de rosto humano e os reality-shows,
traduzem a chegada a um espaço de visibilidade pública
de gostos, gestos e formas de estar que não eram socialmente
exibíveis.
Os defesnsores do Serviço Público, muitaas das
vezes, apenas podem fundar-se na existência da televisão
que temos: mais desgovernamentalizada, é certo do que
no tempo do Bloco Central e dos Governos de Maioria Absoluta,
mas completamente incapaz de traçar uma estratégia
que lhe permita encontrar uma equação equilibrada
entre audiências e qualidade. Os que não acreditam
no serviço público garantem que o pluralismo será
assegurado pela segmentação que as novas tecnologias
asseguram, nomeadamente, através do cabo. Esquecem-se
que ao aumento dos fluxos, à multiplicidade de alvos tem
correspondido uma concentração de meios que pode
originar perversões no pluralismo.
Finalmente, creio que não se deve confundir serviço
público exclusivamente com propriedade pública.
Compreendo, que em Portugal seja necessária a existência
de um serviço público, pela enorme desigualdade
no acesso á cultura. Não se trata de ser um adepto
do paternalismo cultural. Simplesmente compreendo que o direito
de escolha supõe uma democratização no acesso
a todas as formas de cultura que em Portugal não aconteceu
porque passamos do oficialismo surumbático à trivialidade
pimba, como passamos, aliás do Estado paternalista à
euforia liberal dos anos 80. Nesse sentido, não me perturba
o gosto das "massas" pelo entretenimento trivial. O
que me perturba é o facto de décadas de défice
no domínio da literacia e de analfabetismo não
pderem assegurar efectivas condições de igualdade
na escolha.
Finalmente, não vejo que o conceito de serviço
público tenha que confundir com a propriedade pública
de televisão , sobretudo no modelo actualmente existente.
Pode haver muitas e diversas formas de se atingir o que se pretende
: desde a concessão privada, com a eventual inclusão
de apoios indirectos aquelas formas de programação
que contribuem para a representação de interesses
minoritários e legítimos, passando pela tentativa
de garantir espaços plurais - as televisões de
acesso público amercanas são um exemplo - sem
que a propriedade dos meios ter que ser necessáriamente
estatal até à manutenção de um sector
público que sirva efectivamente o pluralismo político
e se preocupe menos com as questões do gosto, existem
muitas outras fórmulas que os especialistas bem conhecem.
Nesse sentido, todos os reducionismos, todas as exaltações
são prejudiciais a uma discussão serena.
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