Realpolitik e
moral
ou Angola
e Soares
Com o pequeno ensaio a que deu o título "Sobre a
expressão corrente: Isto pode ser correcto na teoria,
mas nada vale na prática" propunha-se Kant 1, já
há mais de duzentos anos, responder a todos aqueles que,
em nome da "prática", do "pragmatismo"
e da "realpolitik", se acham no direito de justificar
o atropelo dos princípios mais elementares (a "teoria")
da ética e da política.
Vem isto a propósito do chamado "caso Soares"
- um exemplo típico de como a discussão política
tende constantemente, em Portugal, a desviar-se do substancial
para o acidental. E o substancial é, neste caso, o seguinte:
Angola é um estado legitimado pelo direito? Não.
Violam-se, em Angola, os direitos humanos mais elementares? Violam.
Angola é uma cleptocracia? É. Nas zonas controladas
pela UNITA o panorama é diferente? Não. Se em vez
do MPLA fosse a UNITA que estivesse no poder, faria melhor ou
sequer diferente? Estou convencido de que não.
Estas são as questões essenciais. Uma posição
coerente em termos de defesa dos "direitos humanos",
da "democracia" e da "paz" extrairia, da
resposta a tais questões, a conclusão de que o
MPLA e a UNITA não podem deixar de ser colocados no mesmo
plano e condenados de forma igualmente veemente. Em vez
disso, e em nome da realpolitik "isto pode ser correcto
na teoria, mas nada vale na prática", ironiza Kant
- e da pretensa defesa dos interesses portugueses, o Estado português
praticamente "aos costumes disse nada". Isto é,
assobia, olha para o ar, vai dar uma volta. Ficamos assim a saber
que o problema dos "direitos humanos" e dos "princípios
éticos e políticos" se coloca, exclusivamente,
em relação a Países com os quais os (supostos)
interesses portugueses não estão em jogo. Podiam,
ao menos, ter-nos informado acerca de que interesses e que portugueses
estavam aqui em jogo. Até porque, e perdoe-se-nos a comparação,
também Oliveira Salazar e Marcelo Caetano invocavam repetidamente,
em situações análogas, a defesa dos "interesses
portugueses".
Ou será que, e como aventam alguns, continuamos a sofrer,
um quarto de século depois da descolonização,
de um "complexo do colonizador" que nos impede de nos
pronunciarmos criticamente sobre o que se passa nos países
ex-colonizados - e, a par disso, a continuarmos a envergonhar-nos
dos nossos mortos e estropiados, a flagelar-nos pelas matanças
que levámos a cabo, a penitenciar-nos pela exploração
que pusemos em prática? Há que assumi-lo claramente:
praticámos todas essas e muitas outras infâmias
que desconhecemos. No entanto, só uma visão ingénua
e totalmente ignorante em termos de história universal
-, pode desconhecer que os próprios colonizados colonizaram,
por sua vez, outros povos, mataram e exploraram tal como nós.
Não há, na história da humanidade, nenhum
povo que possa, como Pilatos, dizer "Lavo daí as
minhas mãos". Poderíamos, a partir desta assunção,
concluir que todos os Estados sejam ou não ex-colónias
devem, no que se refere à sua prática (e
na forma como essa prática respeita ou não os princípios
éticos e políticos), ser tratados de igual forma.
Porquê criticar a Jugoslávia de Milosevic e a Áustria
de Haider e não a Angola de Eduardo dos Santos? Porquê
criticar as diversas formas de neo-colonialismo e não
o neo-colonialismo que campeia nalgumas das ex-colónias
portuguesas?
E não digam, por favor, que este é um discurso
neo-colonialista - porque isso é voltar ao mais miserável
dos chavões.
1- Immanuel Kant, A Paz Perpétua
e Outros Opúsculos, Lisboa, Edições 70.
1988, pp. 57-102. |