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Paulo Serra


Realpolitik e moral
ou Angola e Soares

Com o pequeno ensaio a que deu o título "Sobre a expressão corrente: Isto pode ser correcto na teoria, mas nada vale na prática" propunha-se Kant
1, já há mais de duzentos anos, responder a todos aqueles que, em nome da "prática", do "pragmatismo" e da "realpolitik", se acham no direito de justificar o atropelo dos princípios mais elementares (a "teoria") da ética e da política.
Vem isto a propósito do chamado "caso Soares" - um exemplo típico de como a discussão política tende constantemente, em Portugal, a desviar-se do substancial para o acidental. E o substancial é, neste caso, o seguinte: Angola é um estado legitimado pelo direito? Não. Violam-se, em Angola, os direitos humanos mais elementares? Violam. Angola é uma cleptocracia? É. Nas zonas controladas pela UNITA o panorama é diferente? Não. Se em vez do MPLA fosse a UNITA que estivesse no poder, faria melhor ou sequer diferente? Estou convencido de que não.
Estas são as questões essenciais. Uma posição coerente em termos de defesa dos "direitos humanos", da "democracia" e da "paz" extrairia, da resposta a tais questões, a conclusão de que o MPLA e a UNITA não podem deixar de ser colocados no mesmo plano – e condenados de forma igualmente veemente. Em vez disso, e em nome da realpolitik – "isto pode ser correcto na teoria, mas nada vale na prática", ironiza Kant - e da pretensa defesa dos interesses portugueses, o Estado português praticamente "aos costumes disse nada". Isto é, assobia, olha para o ar, vai dar uma volta. Ficamos assim a saber que o problema dos "direitos humanos" e dos "princípios éticos e políticos" se coloca, exclusivamente, em relação a Países com os quais os (supostos) interesses portugueses não estão em jogo. Podiam, ao menos, ter-nos informado acerca de que interesses e que portugueses estavam aqui em jogo. Até porque, e perdoe-se-nos a comparação, também Oliveira Salazar e Marcelo Caetano invocavam repetidamente, em situações análogas, a defesa dos "interesses portugueses".
Ou será que, e como aventam alguns, continuamos a sofrer, um quarto de século depois da descolonização, de um "complexo do colonizador" que nos impede de nos pronunciarmos criticamente sobre o que se passa nos países ex-colonizados - e, a par disso, a continuarmos a envergonhar-nos dos nossos mortos e estropiados, a flagelar-nos pelas matanças que levámos a cabo, a penitenciar-nos pela exploração que pusemos em prática? Há que assumi-lo claramente: praticámos todas essas e muitas outras infâmias que desconhecemos. No entanto, só uma visão ingénua – e totalmente ignorante em termos de história universal -, pode desconhecer que os próprios colonizados colonizaram, por sua vez, outros povos, mataram e exploraram tal como nós. Não há, na história da humanidade, nenhum povo que possa, como Pilatos, dizer "Lavo daí as minhas mãos". Poderíamos, a partir desta assunção, concluir que todos os Estados – sejam ou não ex-colónias – devem, no que se refere à sua prática (e na forma como essa prática respeita ou não os princípios éticos e políticos), ser tratados de igual forma. Porquê criticar a Jugoslávia de Milosevic e a Áustria de Haider e não a Angola de Eduardo dos Santos? Porquê criticar as diversas formas de neo-colonialismo e não o neo-colonialismo que campeia nalgumas das ex-colónias portuguesas?
E não digam, por favor, que este é um discurso neo-colonialista - porque isso é voltar ao mais miserável dos chavões.

 

1- Immanuel Kant, A Paz Perpétua e Outros Opúsculos, Lisboa, Edições 70. 1988, pp. 57-102.






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