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Infadebilidade
por Onésimo Almeida

As eleições primárias nos Estados Unidos ainda não terminaram e ao mesmo tempo terminaram já por desistência de McCain e Bradley, pelo que estão praticamente escolhidos os candidatos de cada partido. Esperemos que nas finais não regressem as lutas religiosas (felizmente apenas verbais) que dominaram parte dos debates entre os republicanos. Quem
diria que elas iriam ressurgir tão proeminentemente na primeira
campanha eleitoral americana do terceiro milénio? Talvez o debate amaine. Não creio, porém, que o tema religião
desapareça de todo. Gore e Bush aludem com frequência à sua filiação no movimento dos "cristão-renascidos", e é bem provável que o filho do ex-presidente não se livre de ataques a gestos como o de ter ido proferir um discurso televisionado nacionalmente na Bob Jones University, bastião do mais anacrónico e ordinário anti-catolicismo, facto que Bush convenientemente silenciou na sua alocução. Mas com os
católicos os defensores do politicamente correcto ainda hoje não se afligem, nem há sinais de virem a irritar-se.
Essa foi, aliás, apenas uma das praga de incidentes religiosos que assolou as primárias. Ora, após o desanuviamento operado pela presidência Kennedy relativamente ao catolicismo, e depois do que aconteceu à Igreja Católica nos Estados Unidos bem como no resto do mundo, ninguém sonhava com um tal ressuscitar da questão. Registe-se, todavia, as feições agora marcadamente diferentes. Há quarenta anos John Kennedy viu-se forçado a enfrentar um congresso de líderes religiosos em Houston a fim de acalmá-los explicando-lhes que não seria
um joguete nas mãos do papa. Hoje são os líderes protestantes a namorarem o voto dos católicos e a procurarem desligar-se da direita radical - os protestantes evangélicos - que não obedece cegamente ao papa mas arroga-se contactos directos, frequentes e muito especiais com Deus.
É saída fácil dizer-se que a religião nada tem a ver com a política. Qualquer religião engloba um conjunto de prescrições morais, e a política é, no fundo, a gestão pública das diversas éticas. É só por conveniência pragmática que se recomenda civilidade na defesa de crenças pessoais e se preconiza a tolerância como princípio fundamental a observar, para não continuarmos a matar-nos uns aos outros em nome de
Deus ou de qualquer das suas variantes. Na prática, é difícil
separar-se o que não está na realidade separado. As tentativas de lidar com essa ambiguidade têm tomado as formas mais diversas ao longo do processo lento da secularização da actividade política. Abraham Lincoln, por exemplo, pessoalmente convencido da imoralidade da escravatura e de ela constitutir uma violação profunda da Declaração da
Independência, recusou-se sempre a falar em nome de Deus. No seu segundo Inaugural Address afirmava poder simplesmente rezar para que o seu país actuasse "com firmeza no recto caminho, como Deus nos permite que vejamos a rectidão".
Saída subtil, sem dúvida, a acentuar a obrigação de os crentes
indagarem da certeza das suas convicções religiosas, e deixar espaço para a dúvida que permitirá aceitar outras interpretações sinceras, admitindo a possibilidade de o outro lado também ter uma linha vermelha directa para o Oval Office de Deus.
(É muito antiga, e por isso apenas obliquamente referirei aqui, a de Begin explicando a Nixon que poderia usar grátis o seu telefone directo para Deus porque em Israel contava apenas como chamada local. Até porque a piada não funciona para os meus leitores portugueses, a quem a Telecom cobra as locais também.)
A argúcia da posição de Lincoln encontrou por sinal engenhosa réplica nesses já remotos e difíceis tempos para os candidatos católicos americanos à cena política nacional. Há dez eleições, durante a renhida luta entre os protestantes e Kennedy (e, ao contrário da história de Nixon e Begin, esta não é anedota), uma entrevista do candidato católico parece ter tido um impacto talvez decisivo no eleitorado americano pejado de dúvidas sobre a isenção do então eventual presidente face às instruções de Roma. O entrevistador perguntou-lhe se acreditava na infalibilidade pontifícia. Kennedy, ágil de mente e de
espírito, tomou ares de grande ponderação ao responder:
Bom, eu nessas coisas de teologia não sou muito seguro e por isso consulto sempre o meu amigo cardeal Spellman (então arcebispo de New York). Há tempos fiz-lhe exactamente a mesma pergunta e ele respondeu-me: - Olha, Jack, se o papa é infalível, também não sei. Só sei que ele me chama sempre Spilman.






 
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