Do calendário
escolar
à
criatividade com hora marcada
Muito se tem falado do calendário escolar, ultimamente
na nossa Universidade. Muito se fala, muito se critica e, no
entanto, muito poucos são os que fundamentam as suas tomadas
de posição. Há nitidamente uma necessidade
imperiosa de fomentar um debate de ideias que possa contribuir
para o esclarecimento de questões que são fundamentais
para o funcionamento harmonioso da nossa Universidade.
A forma como entendo o exercício das minhas funções
- inequivocamente não autocrática - deixa-me,
muitas vezes, impossibilitada não de dar a minha opinião,
mas de fundamentá-la cabalmente. Provavelmente a meio
da minha exposição já metade da audiência
se exasperaria querendo apenas saber se sou a favor ou contra
o calendário proposto.
No entanto, a questão é demasiado complexa para
se esgotar numa resposta de tipo dicotómico "sim"
ou "não". É que as questões complexas
necessitam de respostas também elas complexas, mas que
sejam esclarecedoras, pois de outro modo não são
respostas.
É evidente que, no momento actual, temos um conflito.
Pode não ser um conflito aberto, mas sente-se claramente
no ar quase uma nova cultura organizacional de suspeição.
Se, juntamente com alguns teóricos da Psicologia das Organizações,
atribuirmos a tal cultura o significado de "o modo como
cá se faz", devo dizer que isso me entristece bastante.
De facto, "o modo como cá se faz", ultimamente,
é não entender as pessoas e as suas ideias como
entidades claramente distintas. Com efeito, na maioria das vezes,
as críticas que vamos ouvindo passam a mensagem de que
quem não está a favor do novo calendário
escolar está manifestamente contra quem o propõe.
Ora, nada de mais equívoco e perigoso, quer do ponto de
vista estritamente profissional, quer do ponto de vista das relações
interpessoais que são vitais para a vida na Universidade.
Há - pelo menos na minha mente - uma separação
nítida entre o respeito devido às pessoas e o que
são as suas ideias. É evidente que quem propõe
soluções para problemas fá-lo com a melhor
das intenções. É também evidente
que quem discorda não respeita menos os outros, por esse
facto. A minha formação e sentido de responsabilidade
pedem-me que deixe claro o respeito que todas as pessoas me merecem,
apelando ainda a esse sentido de responsabilidade e a esse respeito
para, livremente, poder subscrever ideias ou discordar delas.
A ciência psicológica e toda a investigação
desenvolvida com base nela, têm demonstrado que os conflitos
devem ser resolvidos de forma satisfatória para todos
os que neles se encontram envolvidos. Para tal importa começar
por esclarecer que as críticas são formuladas relativamente
a ideias ou comportamentos e não a pessoas, ofendendo-as
e ferindo-as no seu EU, caindo, assim, em impasses extremamente
prejudiciais para o bom entendimento interpessoal que, esse sim,
dinamiza o progresso.
Não é segredo para ninguém que sou, desde
a primeira hora, contra a nova proposta de calendário
escolar, tendo já surgido, nos órgãos a
que presido, algumas propostas alternativas muito válidas
que a seu tempo serão conhecidas. Subscrevo, no entanto,
inteiramente a ideia de que há necessidade de melhorar
o processo ensino- -aprendizagem, por forma a promover,
quer o bem-estar psicológico, quer os índices de
sucesso escolar.
É sobre aquele binómio (ensino/aprendizagem) e
sobre o seu correlato (sucesso escolar) que pretendo pronunciar-me
para fundamentar a minha recusa da actual proposta. Desiludam-se
aqueles que já rotulavam de fundamentalistas os docentes
das Ciências Sociais e Humanas!
Entendendo eu o ensino como pautado por uma adequação
permanente dos programas às mais recentes descobertas
científicas, não posso estar de acordo com um calendário
que se propõe começar as actividades lectivas no
início de Setembro. Esta época é propícia
a toda uma reflexão em torno da planificação
do ano escolar em termos dos conteúdos a leccionar, das
actividades a promover, das metodologias e dos materiais e recursos
a utilizar. Tal planificação não se faz,
de forma séria, num final de ano lectivo - como alguns
sugerem - imediatamente antes de partirem para férias!
Mais reflexão é sinónimo de mais qualidade
pedagógica.
Uma outra questão, complementar da primeira, prende-se
com a aprendizagem. A concepção de aprendizagem
que as teorias cognitivistas advogam não tem nada a ver
com a concepção que dela tinham as teorias behavioristas.
Ao sujeito da aprendizagem é reconhecido - já lá
vão muitas décadas - um papel activo na construção
do conhecimento. O sujeito da aprendizagem deixou de ser concebido
como um mero recipiente, tabula rasa ou folha branca onde tudo
se podia inscrever, para passar a ser encarado como alguém
que, com as ferramentas da sua mente, constrói conhecimento
a partir dos dados que lhe são fornecidos pelos diversos
domínios do conhecimento. O sujeito activo interpreta
e dá significado à informação que
lhe chega .
Quer isto dizer que um ensino só é de qualidade
se promover uma aprendizagem de qualidade! Uma aprendizagem
de qualidade necessita de muito tempo de estudo, de muita reflexão,
de uma compreensão clara dos conceitos, princípios,
pressupostos ou seja lá o que cada domínio do conhecimento
entende como fundamental! Assim entendida a aprendizagem, deixa
de ter sentido a mera memorização de factos ou
situações para reproduzir num teste de exame. Deixa
de ter sentido dizer que duas épocas de exames separadas
por escassas semanas contribui para o sucesso escolar, deixa
de ter sentido, ainda, clamar por uma especificidade das Ciências
Sociais e Humanas. Ela existe de facto, mas apenas nos processos
cognitivos envolvidos na aprendizagem e tal não implica
que estudar Física ou Matemática exija menos tempo
de reflexão ou menos criatividade. E a criatividade, em
área alguma, tem hora e dia marcados!
Algumas das grandes questões são então:
- que espaço é dado à construção
significativa do conhecimento quando se pretende implementar
dois momentos de avaliação tão próximos
no tempo?
- que sucesso escolar querem os alunos? Um sucesso fictício,
lutando por memorizar mais qualquer coisinha para obter o dez?
- Onde fica o brio profissional? E a sabedoria? Será
que queremos formar profissionais votados ao insucesso funcional?
Aqui deveria começar, em meu entender,
o debate do insucesso escolar!
Como assim não foi, a minha forma
de estar na vida - flexível, conciliadora , mas determinada
- leva-me a encarar esta questão de forma mais clara e
a concordar com algumas das propostas apresentadas nas Ciências
Sociais e Humanas. Tais propostas dão mais espaço
a uma aprendizagem de tipo significativo mais consentânea
com o conceito de sucesso escolar - o verdadeiro sucesso escolar!
Enquanto Presidente do Conselho Pedagógico e enquanto
docente fiel aos mais elementares princípios, compete-me
conciliar e não dividir, pois só assim poderei
pugnar por qualidade para o processo de ensino-aprendizagem e,
muito sinceramente - perdoem-me a imodéstia - os anos
de estudo que levo na área da Educação,
nomeadamente na área da Psicologia da Educação,
não me permitem, em boa consciência, apoiar o calendário
proposto.
E, não havendo soluções ideais, subscrevo
uma solução de compromisso que assegure dignidade
às diferentes Unidades Científico-Pedagógicas
e promova o debate de ideias. |