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João Carlos Correia


O intelectual

De repente, Paris foi sacudida pela memória de Jean-Paul Sartre. O motivo foi a publicação de um livro de Bernard Henry-Lévy. "Le Siécle de Sartre", onde o ex-guru da nova filosofia reabilita quem vintes antes, ajudou a varrer da moda intelectual. Com um centenário completo feito, sobre o nascimento, Jean-Paul Sartre é ainda motivo das reflexões mais ácidas e complexas. Um dos momentos mais mediáticos do azedume que caiu sobre Sartre foi a violenta campanha lançada nos anos 80 por Henry-Lévy e André Gluksmann contra os mestres pensadores, englobando nesta imagem os intelectuais de esquerda . Os motivos evocados foram o companheirismo com o Partido Comunista, a omissão do estalinismo e dos Gulag. Porém, por detrás do vedetismo inflamado dos novos filósofos escondia-se uma nova conjuntura política e cultural que surgia: a esquerda interrogava-se e punha definitivamente em causa o paradigma soviético que se esboroava. Começava a globalização: seguir-se-iam os anos do liberalismo à la mode liderado por Tatcher e Reagan, os movimentos cívicos na Polónia, Checoslováquia, Hungria e Roménia e, finalmente, em 1989, a queda do muro, espécie de cair do pano de um século marcado pela Revolução Russa e pela conferência de Yalta. Sob o ponto de vista filosófico, os anos 60 e 70 tinham começado a gizar, já há bastante tempo, um percurso diverso da euforia existencialista do pós-guerra. Michel Foucault e o estruturalismo já há muito selavam qualquer porta por onde pudesse passar a mais pequena réstea da concepção de Sujeito popularizada por Sartre: um sujeito produto das suas escolhas, condenado a ser livre e condenado a comprometer-se inelutavelmente com a luta pela liberdade. Lyotard, nos anos 80, lançava o anátema sobre as ideologias e as grandes narrativas. Sartre passava ao estatuto de curiosidade histórica. A o mesmo tempo que Sartre pagava o preço dos compromissos, Heidegger - um dos mais espantosos escritores e pensadores do século - conhecia a glória e a "moda", apesar da sua adesão ao nazismo, apesar do discurso em que a energia do Führer fazia mover a hélice do avião. As objecções políticas que serviam para destruir a postura intelectual sartriana não obtinham o mesmo efeito sobre o passado nazi daquele que era, curiosamente, uma das maiores fontes de inspiração da filosofia de Sartre.
E, de repente, eis que tudo o que parecia linear volta a ser posto em causa. O triunfo universal do liberalismo confronta-se com a evidência dos seus fracassos e com a misérias das exclusões. A reflexão ética e política ressurgem nos círculos académicos e intelectuais. Em meados dos anos 80, o próprio Michel Foucault se interroga de novo sobre a possibilidade e a inutilidade da revolta. Os anos 90 assistem ao regresso da sociedade civil e da luta pela democratização da sociedade em volta da expansão de novos direitos. Intelectuais como Gramsci, os teóricos da Escola de Frankfurt, Hannah Arendt e Habermas são recuperados para denunciar os elementos alienantes da sociedade de consumo. A reflexão ética e o pensamento político tentam repensar, de um outro modo, os novos desafios: a exclusão social; a ausência de participação cidadã; as novas tecnologias; a erupção dos movimentos identitários e comunitaristas. De súbito, estamos todos outra vez menos optimistas. E de súbito, a figura de Sartre espreita de novo desde o seu pedestal de compromissos e paradoxos. O intelectual do século que melhor encarnou a figura ela mesma, do intelectual, o homem (único até hoje) que recusou o Prémio Nobel da Literatura, o escritor, o filósofo, o militante político parece ganhar outra vez algum fôlego.

João Carlos Correia






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