O
divã
de Lynch
Lost Highway
David Lynch
EUA
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Estrada perdida só pode existir
algures em Lynchland, terra de signos indecifráveis e
de obsessões que vagueiam livres à margem de qualquer
censura. Se em filmes anteriores era possível vislumbrar
algum contacto com a realidade, embora esta apresentasse marcas
profundas de uma vida interior autónoma e indelével,
o que acontece em Estrada Perdida é uma completa subversão
de planos ontológicos. O real é apenas um minúsculo
ponto da narrativa, enquanto que tudo o resto remete para uma
dimensão que não encontra correspondência
com o domínio da experiência consciente.
David Lynch consegue transformar o écran gigante num enorme
divã que utiliza, quase num estado de auto-hipnose, para
exorcizar os seus demónios. Ninguém joga com o
espaço, com o tempo e com a morte como ele é capaz
de o fazer. Conduzido por uma lógica que não é
decerto a da razão, Lynch confunde os estímulos,
intercruza-os, diminui-os ou amplia-os de forma a que tudo adquira
um sentido que, no entanto, se afasta muito do convencional.
Os factos perdem a sua relação de causa-efeito
e muitas vezes temos mesmo dúvidas se se tratam de factos.
Estes repetem-se ininterruptamente, num ciclo vicioso que permite
às personagens falarem a si próprias. A câmera
não é testemunha de nenhuma realidade objectiva,
apenas dá pistas que nos põem no caminho para lá
chegar.
O público, por seu turno, contribui para este exercício
de psicanálise fazendo um pouco o papel do Freud que ouve
as histórias e procura discortinar o significado dos seus
símbolos. Contudo, aqui reside um efeito perverso, na
medida em que este público funciona como um alvo perfeito
para a transferência das paranóias do realizador.
As personagens misteriosas e as situações surreais
perfuram bem fundo na nossa consciência e instalam-se aí,
não nos deixando sossegar até que a última
resposta tenha sido dada. Ao libertar-se dos "espíritos
malignos" que atormentam a sua mente, Lynch transfere-os
para o público.
Por tudo isto, a única coisa que permite distinguir Estrada
Perdida de uma pura psicose transformada em filme é sem
dúvida o preciosismo artístico que Lynch confere
à sua obra. As luzes e as cores reflectem um trabalho
de extrema sensibilidade na recriação de atmosferas
e sensações. Assim, temos, por exemplo, as cores
fortes e intensas, tais como o vermelho (nas suas diversas tonalidades)
e o negro, abundantes nas roupas e nos cenários que conjuntamente
com a fraca luminosidade ajudam a originar ambientes densos que
nos alertam para o mistério e para a acentuada tensão
psicológica da cena. Na representação de
sentimentos como o desejo, as cores variam para os brancos e
a luz é tão intensa que quase nos cega - recordemos,
por exemplo, a cena de sexo no deserto. O carácter estético
da imagem nota-se ainda nos cuidados planos de pormenor, que
mais do que pretenderem ressaltar um aspecto relevante para o
contexto da história, são mostras de uma visão
minuciosa própria de um pintor. A banda sonora assume
também um papel de especial relevo pois é capaz
de se adequar ao ritmo impresso a cada cena auxiliando a gerar
o caos e a tensão associados à narrativa.
Estrada Perdida é acima de tudo um filme para quem gosta
de sentir o cinema e para quem gosta que o cinema lhe possa transmitir
sensações mais do que simplesmente contar uma história.
Marta Pinho Alves |
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