António Bento
|
... |
Como? A Vida Universitária?
" Numa era de
técnica avançada, a ineficácia
é um pecado contra o Espírito Santo".
Aldous Huxley
Em qualquer Universidade há três
espécies de pessoas, a saber: os estudiosos (scholars), os estudiosos
que são também professores e os que vêm para ser ensinados, os
estudantes. O que distingue uma Universidade é um modo especial de
realização da procura do saber e o que a caracteriza é o modo como
essa procura do saber se transforma num empreendimento cooperativo. Os
primeiros procuram o saber e não a aquisição de informação. E têm
esta distinção por necessária e subtil. O desprezo com que por vezes
são bafejados quando o mundo os toma por pobres pedantes, é quase
sempre um erro de avaliação da natureza do seu trabalho. Julga-se a
actividade do estudioso pela sua utilidade. Porém, e na medida em que
este critério da utilidade é imediata e unicamente encaminhado para a
ideia de profissão, a Universidade perde necessariamente a criação
imediata como forma de comunidade. De facto, a estranheza hostil e a por
vezes incompreensão da escola perante a vida - uma vida que precisa da
ciência, da arte e da fé - podem ser interpretadas como uma recusa do
poder criativo imediato, não beavoristicamente vinculado à profissão.
Em todo o caso, qualquer estudioso sabe que a finalidade da educação
não pode ser apenas e exclusivamente profissional. Onde a ideia
dominante (única) da vida universitária é a profissão e o emprego, o
job, não há, não pode haver, lugar para a ciência; não pode haver
uma genuína experiência de dedicação e de devoção a um
conhecimento enquanto pusermos no altar das nossas mais altas
esperanças o sacrossanto valor da segurança.
Menos ainda, pode existir e prevalecer o amor à ciência, enquanto
entrega e passagem do testemunho da vida e da experiência a uma
geração mais nova. Por isso, esta árdua e perigosa entrega à
ciência e à juventude tem de existir no estudioso como uma generosa
capacidade de amar e tem de ser a raiz da sua criação.
A procura do saber não é, portanto, uma louca e desenfreada corrida em
que os competidores procurem alcançar o melhor lugar (no pódio), não
é sequer uma discussão - pelo menos no sentido em que hoje a palavra
se transformou, pressupondo que todas as opiniões são boas por si
mesmas, que é saudável que as pessoas se exprimam, etc, como manda
algum "pedagogismo" democrático onde impera o despotismo da
opinião. Como disse algures Nietzsche, "Opiniões públicas -
preguiças privadas"!
É por isso que "estar informado", e, por maioria de razão,
"estar informado" na Universidade, é sinónimo de mau gosto e
de excremencialidade estatística e normativa. É horrível alguém ter
que dirigir a palavra a outro alguém que só é capaz de pensar e
sentir a partir do momento em que reconhece no interlocutor uma suposta
"paridade informativa" - é o clímax do juízo jornalístico
que tende a transformar a Universidade numa bastarda e sui generis
alcoviteirice.
Under the circumstances, a própria base da possibilidade da conversa e
do mútuo reconhecimento assenta quase exclusivamente nesta espécie de
a priori informativo. Muito simplesmente, nesta conversa que apenas se
torna viável mediante um denominador comum informativo, o que se
pretende é multiplicar o consenso sobre a imperiosa e vital necessidade
das opiniões. O que expõe claramente a faceta abjecta de uma tal
necessidade. E, mais do que isso, a obrigatoriedade de continuar a
emitir e a dispor de opiniões sobre a mediana das opiniões existentes
e comummente recenseáveis.
Como diria o senhor Fernando Pessoa, "Uma opinião é uma grosseria
mesmo quando não é sincera". Ora, a acreditar no mesmo senhor
Fernando Pessoa, " Ter todas as opiniões é ser poeta". Mas,
perguntamo-nos nós: Quem é que por aí vemos (na Universidade) que
tenha apenas todas as opiniões? Ninguém, é bom de responder, não é
verdade?
Ora, assim sendo, e desde que as circunstâncias acima referidas venham
eventualmente a verificar-se (a ignomínia da sabichonice sobre o que
quer que seja e da familiaridade com o que quer que seja) e, claro,
desde que pelo menos um dos interlocutores se sinta por elas ultrajado,
propomos que se substitua o clássico e sempre extensível "vai à
merda" pelo mais actual, directo e certeiro "vai à televisão".
Caso o cidadão em causa se recuse a ir ("à televisão") deve,
evidentemente, ser logo ali objecto de uma medida educativa disciplinar
exemplar (castigo).
Regressando agora ao que vínhamos expondo, deve acrescentar-se o quão
penoso é, do ponto de vista do sentimento estético, observar como o
fenómeno mais chocante, mais aflitivo, mais mortificante e perigoso da
vida na Universidade se expõe, em toda a sua crueza, na atenção
mecânica com que o auditório, em geral, segue a exposição do saber.
O que é que isto significa? Significa que, ao contrário do modo como a
conceberam e imaginaram os seus fundadores, a organização da
Universidade não se baseia já na potencial produtividade dos seus
estudantes.
Há actualmente nas Universidades jovens (e menos jovens) que não
estão lá a fazer nada. Estão lá porque é obrigatório, ("Prontos...
sei lá!... Eu acho..."), exactamente como no quartel. Tal como os
recrutas, procuram sobretudo iludir os meios da instituição, pelo que
parecem estranhos ao fim desta, que é o de os instruir. Parecem antes
querer gozar o que está imediatamente disponível. O "pedagogismo"
concede-lhes isso. A vontade de saber parece ter desaparecido há muito
tempo (nos casos em que chegou a existir).
Mas que relação mantêm exactamente os jovens com esta vontade de
saber? É frequente ouvi-los dizer: "Ó pá, tu deixa-me lá
apanhar com o canudo na mão e com um emprego no bucho, que depois é
que vais ver quem é que goza a vida." Com isto, parecem estar
cheios de humilhação, de agressividade de toda a espécie, de
vinganças reprimidas, e o estudo das matérias, claro, é um salve-se
quem puder e um venha-a-nós-o-vosso-reino.
No entanto, o estudioso é alguém que sabe como dedicar-se à tarefa do
estudo: a sua voz natural não é nunca nem a do pregador nem a do
instrutor. Todos os estudiosos genuínos, uns mais do que outros,
comunicam inevitavelmente, a quem seja capaz de o reconhecer, alguma
coisa do que sabem acerca do modo como procurar o saber. E, para que uma
tal coisa suceda, exige-se-lhes que sejam algo mais do que meros
diligentes instrutores. Espera-se que sejam conhecedores das regras, sem
estarem muito preocupados em ensinar conclusões.
Poderá eventualmente alguém ir para escolas de arte onde lhe sejam
ensinadas uma dúzia e meia de maneiras de desenhar um gato ou uma
mão-cheia de truques a ter presente quando se queira pintar um olho,
mas o estudioso, enquanto professor, não ensinará nunca como desenhar
ou pintar mas... como ver.
É certamente esse o sentido de uma alegoria narrada por Ezra Pound no
seu A B C of Reading: " Um estudante post-graduado, equipado com
honras e diplomas foi ter com Agassiz, para receber os toques finais. O
sábio homem apresentou-lhe um pequeno peixe e pediu-lhe que o
descrevesse.
Estudante post-graduado: Isso é apenas um peixe lua-do-mar.
Agassiz: Isso sei eu. Escreve uma descrição dele.
Após alguns minutos, o estudante voltou com a descrição do Ichtus
Heliodiplodokus ou qualquer outro termo usado para ocultar do
conhecimento ordinário o vulgar peixe lua-do-mar, da família dos
Heliichtherinkus, etc., tal como estava escrito nos livros da
especialidade sobre o assunto.
Agassiz pediu de novo ao estudante que lhe descrevesse o peixe.
O estudante escreveu um ensaio de quatro páginas. Então Agassiz
pediu-lhe para olhar para o peixe.
Ao fim de três semanas, o peixe estava em estado adiantado de
decomposição, mas o estudante sabia alguma coisa acerca dele."
Hoje parece que já não se aprende. Aprende-se a aprender (é a
célebre teoria do deuterolearning). A pedagogia acabou por suplantar a
instrução. Temos hoje professores que não sabem a ponta de um corno,
mas que possuem uma misteriosa Ciência da Educação (sic), verdadeira
mitologia dos tempos modernos, com direito a Departamentos, cátedras e
tudo o mais de sinecuras e mordomias. Resultado: desde há uma boa
dúzia de anos vemos chegar ao ensino superior estudantes com sintomas
de iliteracia (analfabetos) e docentes (professores) aptos a distinguir,
com uma destreza quase sobrenatural, um aluno de desenvolvimento
instável (cábula) de um aluno de estrutura cerebral diferenciada
(burro). Tudo isto, claro, no âmbito do processo de ensino/aprendizagem.
Voltando ao que vínhamos dizendo, para o estudioso, nunca o estudante
deve ser levado a confundir a sua Universidade com um instituto em que
se ouça apenas uma voz, o altifalante canónico técnico, ou com um
politécnico em que apenas se ensinam os maneirismos das vozes. Ele sabe
que uma Universidade que seja digna de ostentar tal nome, deve promover
no seu seio uma cultura de conversação autêntica e humilde (não,
não é o "diálogo", não senhor, nem o alarve arrotar de
opiniões sobre tudo e mais alguma coisa). Por isso, procura por todos
os meios ao seu alcance, incentivar o aluno a não confundir a
educação com a estrita preparação para uma profissão, com a
aprendizagem dos truques de um ofício, com a preparação para um
futuro serviço específico na sociedade ou com a aquisição de uma
espécie de bagagem moral ou intelectual que o acompanhe ao longo da
vida. Ele não confunde educação - que tem que ver com seres humanos -
com funções. É por isso que, como diz Michael Oakeshott, " O dom
característico de uma Universidade é o dom de um intervalo. (...) Um
período em que pode olhar-se para o mundo e para si próprio sem a
sensação de ter atrás um inimigo ou sem a contínua pressão no
sentido de se decidir; um momento em que pode saborear o mistério sem a
necessidade de ter de procurar de imediato uma solução." Por
outras palavras, não tem de se preocupar, como dizia o outro, com o
ganhar a vida, pois que é a altura certa para saber que nasceu de
graça.
Eventualmente, o tempo passado na Universidade poderá não o ter
apetrechado muito eficazmente para ganhar a vida, mas terá aprendido
algo que o ajudará a prosseguir uma vida mais significativa, justamente
uma vida com espírito. Como um dia disse Walter Benjamin: "O jovem
viverá o espírito, e quanto mais difícil lhe seja conquistar algo
grandioso, tanto mais facilmente encontrará o espírito na sua
caminhada e em todos os homens. Aquele que está predisposto à
experiência será amável como homem adulto. O filisteu, esse será
sempre amargo e intolerante."
|