|
|
O centro de Portugal
Sobre naturezas mortas e vivas
texto de Vítor Serrão
Começo por ver, mais uma vez,
as duas célebres Naturezas-Mortas com Doces e Flores, que adornam a
Biblioteca-Museu Anselmo Braancamp Freire, em Santarém. Estão datadas
de 1676 e assinadas por Josefa de Ayala, estimável artista barroca de
Óbidos. Nelas, encontra-se um pouco dessa confeitura fria, conventual
ou burguesa, que alegrou século a século as festas na região do
Ribatejo e da Estremadura: queija-das, ovos moles, hóstias brancas e
rubras, folares pascais com palitos e flores decorativas, tijelas de
chila, fartens, massas folhadas. Os valores desta atávica e centurial
gulodice são comuns tanto a Óbidos, Nazaré e Lourinhã, como a Alcobaça,
Caldas, Santarém e Almeirim, Tomar ou Ourém - terras de doçaria freirática,
muitas delas, num círculo de beatice de mel e açúcar. Olhando as
telas da Biblioteca de Santarém descubro a espiritualidade feita de
elementares sentidos, a dimensão intimista, etnográfica, eivada de
inocência, que irmanizou ao longo do tempo a lezíria ribatejana e o
litoral estremenho.
A viagem é,
pois, de mil seduções feita e não se esgota facilmente em percursos
turísticos contabilizados. A nordeste, o litoral da Nazaré revela-nos
as perspectivas desafogadas do Sítio, com o santuário, o frenesim da
faina piscatória, o sabor da lenda de D. Fuas e, não longe, junto ao
mar, a igrejinha visigótica de São Gião, recém adquirida pelo IPPAR
mas ainda em ruínas. Para o interior, descobrimos as terras férteis
dos antigos Coutos alcobacenses, afeiçoadas por gerações de monges de
Cister sediados no Mosteiro de Santa Maria, cabeça do gótico nacional.
E as Caldas da Rainha, com o hospital fundado pela Rainha D. Leonor, as
casas de «sui generis» «Arte Nova», a força da loiça policroma e
os trechos de paisagem que tanto extasia-ram a paleta de Malhoa. O
forte-prisão da vila de Peniche, esse traz-nos a memória mais recente
da resistência à ditadura salazarista, das masmorras, torturas, fugas
rocambolescas, voos de gaivotas, e lutas dos comunistas, essa espécie
de «barcos abandonados na praia ao pé do mar» de que fala o
historiador- poeta António Borges Coelho, aí aprisionado seis anos a
fio. Mas, defronte, o conjunto de ilhas das Berlengas rasga as brumas
marinhas e empresta uma aura de mistério e de pacificação à sombra
sinistra da fortaleza. E que dizer da zona de Óbidos, paraíso real
para o poeta João Miguel Fernandes Jorge, soprada de ventos marinhos,
abrigada dentro de muros de castelo, onde a pintora Josefa viveu no século
XVII, com o recolhimento do pinhal e a beleza da lagoa que se espraia até
ao mar, com suas igrejas e ruas íngremes, uma terra recém-valorizada
com a descoberta (por Beleza Moreira) da cidade romana de Eburobritium,
um dos raros portos-de-mar dessa época que remanescem?
Descemos
mais tarde ao morro de Alenquer, que foi vila de letrados humanistas
como Damião de Góis, bafejada em quintas e villas pelos ventos da «nobiltá»
da Renascença, mas não há que esquecer, antes, a matriz gótica da
Lourinhã, na via de peregrinação marítima para Santiago de
Compostela e, na mesma vila litorânea, o Museu da Misericórdia, com o
excepcional painel manuelino de São João em Patmos, que evoca o
mundo das Descobertas no seu fundo marinho povoado de embarcações. A
sul, a marginar com a grande serra de Sintra, ergue-se o Palácio-
Convento de Mafra, gizado por um arquitecto alemão para alimentar a
utopia absolutista de uma espécie de Rei-Sol doméstico, conforme às
estórias com que José Saramago o imortalizou no Memorial do Convento.
De novo
voltamos a Santarém - a «Pax Julia» dos romanos, candidata de eleição,
junto da UNESCO, a Património da Humanidade - e sentimos como, apesar
de tudo, ainda perdura a força do «ninho de águias» aprumado e
altivo de que falava, no século XVI, o humanista Cataldo Sículo.
Podemos agora coabitar, morosamente, com as ruas medievas e com as
igrejas góticas - que a tornam, segundo Vergílio Correia, a capital
desse estilo em Portugal. Mas não há que esquecer ainda, a grandeza da
lezíria que desliza junto às margens do Tejo, afrontando a fúria do
rio nas cíclicas cheias e pintando a oiro de terra, em silenciosa
quietude, o quadro vivencial do campino e do trabalhador da borda d’água.
Mais a nordeste, enfim, a realidade da terra altera-se em vegetação e
cores, mas são ainda as cidades acasteladas - Torres Novas e Tomar -
que devem prender a atenção do visitante que busca quietude e sentido
de revelação. Em Tomar, Património Mundial da UNESCO, o morro do
castelo templário revela-nos o recheio ímpar do Convento de Cristo,
coerente sucessão de estilos artísticos onde coabitam em harmonia a
charola românica (século XII), a igreja manuelina e o claustro
maneirista, estrutura «palladiana» «avant la lettre», traçado por
Diogo de Torralva. Em São João Baptista, merece atenção o ciclo de tábuas
de Gregório Lopes e, se o percurso se acertar com o calendário, a
visita poderá coincidir com a policroma Festa dos Tabuleiros.
|