Um refúgio para estudar

O seu português é gramaticalmente perfeito e só a pronúncia pode indiciar que está a mais de cinco mil quilómetros de casa. Sara Hummeid nasceu em Damasco, na Síria, no ano de 1993, dois meses depois da Convenção sobre Armas Químicas decretar a proibição de produção e armazenamento de gás sarin. A escalada de violência afastou a jovem do país de origem e, movida pelo desejo de continuar a estudar, chegou à Universidade da Beira Interior. Quatro anos depois, está a um pequeno passo de concluir a licenciatura em Ciências Farmacêuticas.

por Afonso Canavilhas

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Domingo, 2 de março de 2014. Sara Hummeid não hesita assim que é questionada em relação ao dia em que chegou a Portugal, país do qual só tinha duas referências: a geográfica, reconhecendo-o no mapa, e a figura de Cristiano Ronaldo. Horas depois de ter aterrado em Lisboa, viajou para a Covilhã juntamente com três colegas com os quais, à data, não partilhava mais que a nacionalidade.

“Assentou arraiais” numa das residências de Santo António e quando olhou à sua volta, pensou para com os próprios botões: “O que é isto? Estou no meio da montanha!”. A estranheza de “não ver ninguém na rua” e a dificuldade em encontrar algum sítio para comer uma refeição marcaram o primeiro dia de Sara no nosso país. A velha máxima diz que “um livro não se deve julgar pela capa” e o sorriso com que relata o primeiro dia na UBI diz tudo: a impressão inicial em relação à sua nova realidade estava completamente desvirtuada.


A imposibilidade de ir à faculdade

O ano civil de 2011 marca o início da guerra civil na Síria. Dois anos depois, a imprensa internacional avança que “2013 foi o ano mais sangrento” desde o início. Sara Hummeid, licencianda numa das universidades de Damasco, capital síria e sua cidade natal, fica impossibilitada de ir às aulas em função do agravamento da situação. A solução passa por deixar o país e rumar ao sul do Golfo Pérsico para viver no Qatar, nação em que o seu pai se encontrava a trabalhar.

Sem possibilidade de estudar naquele país, a jovem síria encontrou uma janela de oportunidade na Europa e começou a fazer “contas à vida”. Turquia, Alemanha, Holanda e Portugal foram as opções consideradas por Sara Hummeid. A possibilidade de estudar no nosso país com o apoio de uma bolsa acabou por ser decisiva na hora da escolha.


A língua, pois claro

Quem interagir com Sara Hummeid facilmente perceberá que, volvidos quatro anos, a jovem síria possui um domínio invejável da nossa língua. No entanto, nem sempre foi assim. Na hora de apontar a maior dificuldade aquando da chegada a Portugal, a resposta surge na ponta da… língua.

Assim que chegou, em 2014, com o segundo semestre em pleno decurso, Sara Hummeid inscreveu-se de imediato em duas cadeiras para poder ter o primeiro contacto com a língua portuguesa em contexto académico. No início, para além das aulas em que “pouco ou nada percebia”, frequentava um curso de línguas com a duração de três horas por semana que não permitiu ir além do básico.

Ao sentir que precisava rapidamente de alargar o seu léxico, foi-se inscrevendo em todos os cursos de português que a universidade ia disponibilizando e frequentou outros dois em Lisboa. Com “o apoio dos professores e a ajuda dos colegas que melhor sabiam falar inglês”, o semestre teve um final feliz: Sara Hummeid conseguiu aprovação a ambas as cadeiras, destacando ainda a importância da assiduidade às aulas para o cumprimento desse objetivo.

A partir daí, faltava compreender um “sistema de ensino muito diferente, com aulas práticas, frequências e ainda exames”, sem esquecer a complexidade dos tempos verbais: “em árabe é muito mais fácil, só temos três tempos”, atira, entre sorrisos.  


"Os jovens portugueses são mais «abertos» que os sírios, têm mais liberdades e de certa forma podem escolher a vida que querem ter..."

Sara Hummeid


Integração

Um ano e meio após a sua chegada, Sara Hummeid já se encontrava ambientada com o português e já conseguia compreender praticamente tudo, fator que acelerou a sua integração. Apesar de ter sido bem recebida desde a primeira hora, a dificuldade dos colegas a nível do inglês dificultava a interação, barreira que entretanto foi totalmente ultrapassada. Enquanto conversamos na Faculdade de Ciências da Saúde, a conversa é interrompida uma mão cheia de vezes por acenos e cumprimentos. O uso do “hijab” facilita a identificação à distância e Sara acena com simpatia a todos os seus conhecidos.

No nosso país há quatro anos, Sara sente-se à vontade para comparar a realidade em que habitam os jovens portugueses com a dos jovens do seu país. “Há muitas diferenças. Os jovens portugueses são mais «abertos» que os sírios, têm mais liberdades e de certa forma podem escolher a vida que querem ter. Embora ache que os portugueses se dedicam os estudos, os sírios são mais aplicados, pois no meu país tens a noção de que é muito difícil conseguir algo sem estudar”, aponta.

Na Síria, frequentar uma universidade pública não implica o pagamento de propinas. Sara Hummeid afirma que, por norma, todos os estudantes que concluem o ensino secundário vão para a universidade e quem não pretende fazê-lo nem sequer termina o secundários.


"É cada vez mais difícil sair do país"

Sara Hummeid


Estudos são alternativa à guerra

Para os rapazes, a possibilidade de concorrer e frequentar uma universidade é vista como a única alternativa de adiar a prestação do serviço militar obrigatório. Depois de cumprirem 18 anos de idade, todos os rapazes sírios estão obrigados ao cumprimento de um período militar com a duração de um ano e seis meses. Sara Hummeid revela que “é cada vez mais difícil sair do país” de forma legal e que a “vizinha” Turquia, tantas vezes encarada como escapatória no passado, também tem as suas fronteiras fechadas na ausência de autorização – é necessário visto para rumar a solo turco de há dois anos a esta parte. No que diz respeito à diferença de género neste tipo de questões, considera que hoje em dia “todos têm liberdade para estudar e trabalhar”.

O Líbano, país que também faz fronteira com a Síria, começou a ser encarado como alternativa para os jovens sírios, mas a entrada também não é tão fácil quanto isso: “é preciso apresentares provas do sítio onde vais permanecer enquanto estiveres no país e também tens que possuir uma quantia elevada de dinheiro na conta, caso contrário o acesso é negado”, afirma. “É muito por isto que temos a atual crise de refugiados”, conclui Sara Hummeid.


A guerra à distância e o Estado Islâmico

A atualidade no país de origem continua a ser uma grande preocupação para Sara Hummeid e assim que a convidamos a abordar o tema, o sorriso torna-se nervoso e a entoação é a de alguém revoltado.  A situação em Damasco, capital síria, está “controlada”, mas os bombardeamentos destruíram muito território. Na hora de elaborar um quadro no que diz respeito à realidade do país em consequência do conflito, Sara Hummeid considera uma divisão da Síria em três “fações”: uma de influência turca, outra aliada à Rússia e uma terceira com o Irão, nomeadamente a cidade de Damasco e a região sul. Neste momento, “há menos cidades controladas pelos rebeldes”. 

Num país dominado pelo regime de Bashar Al-Hassad, em que o acesso à educação não parece estar entre os principais problemas, quisemos saber qual é a “versão do mundo” lecionada nas instituições de ensino sírias. Depois de posicionar o regime “do lado russo”, a resposta de Sara Hummeid foi pronta e abrangente: “Transmitem-nos que os Estados Unidos são o «diabo do mundo», causadores de todas as guerras. Não gostam dos governos da União Europeia e elogiam o comunismo chinês”.

Em plena globalização e na era da hegemonia da internet, o acesso à informação está democratizado e os jovens sírios não são exceção à regra. “Não acreditava muito naquilo que me transmitiam, mas há quem acredite. Formatar os estudantes é a melhor forma de prolongar o domínio do regime”, relata Sara.  

Assim que a conversa nos conduz até à origem do Estado Islâmico, a jovem síria é muito direta: “É uma obra de um regime que soltou os extremistas presos e abriu as fronteiras com o Iraque. No início, o objetivo passava apenas por «abafar» os protestos contra o regime. Entretanto começaram a morrer pessoas e acendeu-se o rastilho para uma guerra civil que assumiu as proporções que todos conhecem”.


"[Estado Islâmico] é uma obra de um regime que soltou os extremistas presos e abriu as fronteiras com o Iraque”.

Sara Hummeid


No que ao futuro diz respeito, sabe que “quer continuar a fazer investigação”, deixando as portas abertas para “a melhor oportunidade”. O regresso ao país de origem nem sequer está em equação: “Enquanto o atual regime estiver em funções, não vou voltar. Bashar Al-Hassad é responsável pela morte de mais de 500 mil pessoas”.  

Para concluir a licenciatura, Sara Hummeid já só precisa de concluir o estágio que iniciou numa farmácia na Covilhã. Quer dar continuidade a este ciclo em Londres e neste momento aguarda ansiosamente para saber se poderá viajar para Inglaterra.

O ataque encetado por Estados Unidos, França e Reino Unido no mês de abril foi motivo de abordagem. Para Sara Hummeid, esse mesmo ataque “não afetou nada”, uma vez que os bombardeamentos atingiram bases militares já desativadas. Acerca dos ataques, Sara destaca a gravidade das ofensivas israelitas a bases iranianas na Síria.


Atentados na Europa

A denominada “crise de refugiados”, a montante dos ataques terroristas em solo europeu, despoletou uma grande polémica com alguns governos a colocarem um travão à entrada dos emigrantes dessa mesma vaga. Para Sara Hummeid, os atos de terrorismo perpetrados no “velho continente” estão longe de ser uma consequência da chegada de refugiados à Europa: “Se analisares os ataques terroristas na Europa, reparas que nenhum foi da autoria de um sírio e a maioria foram levados a cabo por cidadãos que já estavam na Europa”. 


“Não acreditava muito naquilo que me transmitiam, mas há quem acredite. Formatar os estudantes é a melhor forma de prolongar o domínio do regime”

Sara Hummeid


Ramadão

Nas semanas em que falamos com Sara, a jovem síria está a cumprir o Ramadão, um dos cinco “must do” da religião muçulmana. Para além do Ramadão, período em que os muçulmanos não podem comer, beber ou ter relações sexuais antes de o sol se pôr, há mais quatro rituais “obrigatórios” para os muçulmanos: acreditar em um só Deus (Allah), rezar cinco vezes por dia; ir pelo menos uma vez na vida a Meca e deixar uma percentagem do seu salário para os pobres. 


Mais sírios a caminho

A Universidade da Beira Interior vai continuar a receber estudantes sírios e Sara Hummeid já foi por outra jovem contactada nesse sentido, incentivando a compatriota a viajar para Portugal.
“Cresci muito nestes anos. A minha personalidade está diferente e até já tenho muitos hábitos portugueses. Já não sou tão pontual quanto antes”, atira, entre gargalhadas.