O pastel que perdura no tempo

As tradições são para se conservar, e nada melhor que a gastronomia para continuar
o legado de uma geração que mantêm a sua marca através do pastel de molho.
O pastel de molho é um traço da Covilhã e os que passam pela região querem prová-lo.


por Leandra Morgado

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Todos conhecem o nome, o sabor é único. Este pastel que traz consigo tanta história, vai estar sempre presente na memória de todos os covilhanenses e passará de geração em geração como até hoje.  O pastel de molho é adorado por muitos, detestado por outros, trata-se de um folhado de carne muito característico com um molho de açafrão e vinagre, que o torna exótico.

No entanto, pode ser servido de diversas maneiras: com leite, knorr, chá ou simples.  Os pastéis surgiram em tempos árduos, quando tanto os homens como as mulheres trabalhavam nas fábricas têxteis, debaixo de invernos rigorosos e verões muito secos. Com todos estes fatores, foi necessário inventar-se uma refeição fácil e rápida, praticamente pronta para servir, mas que sustentasse, daí veio a ideia do folhado.  

Nos anos 20 do século passado, os pastéis de molho começaram a ser muito consumidos. Os empregados fabris não tinham tempo para fazer sopa, então estes pastéis faziam de substituto, já que aguentavam diversas semanas. Na altura eram caseiros e as pessoas, ou os produziam por si, ou iam buscar a alguém levando consigo para o trabalho.


Nos dias de hoje a tendência dos pastéis caseiros é para acabar, como esclareceu Luís Silva, técnico de laboratório na UBI, que para ele a tradição só não acaba porque as padarias ainda fazem o pastel, no entanto o sabor não é o mesmo . Luís, filho de uma cozinheira que fazia os pastéis caseiros na época, recorda: “Na altura os pasteis da minha mãe faziam a diferença, pois usava materiais diferentes dos que se usam hoje. Eram logo 500 quilos de farinha e usava as marcas especificas”. Outra curiosidade é que antigamente a sua mãe só usava manteiga verdadeira, a banha nunca fez parte da produção, como se vê hoje em dia. Como refere, sorrindo, “ela dava-lhe outro sabor”. 

A ligação com os pastéis de molho é desde pequenino, “estava a vê-los fazer e a comê-los”, conta Luís, soltando uma gargalhada. Lembra-se da sua mãe vender também para o estrangeiro grandes encomendas que davam muito trabalho. Ela fazia dúzias e dúzias por dia, todos os dias, levantava-se às 6 da manhã para amassar a massa e Luís ia ajudá-la nessa tarefa quando ela já se encontrava mais debilitada. Luís recorda, também, com saudade as vezes que contava os pastéis com o pai.

Na altura havia pouca gente a fazer o pastel e a sua mãe dedicava-se inteiramente a isso. Quando deixou de os fazer perdeu-se muito na zona. Poucos os faziam, outros não queriam mais nenhum a não ser os dela. Ainda existe muita gente que diz a Luís “que saudades daqueles pasteis”. Hoje em dia só tem pena que ninguém na sua família quisesse aprender a faze-los, mantendo a tradição, mas nem os seus filhos gostam do pastel, apesar de terem crescido à volta dele.


Quando confrontado com o segredo para um bom pastel de molho, Luís afirmou que não existem segredos, mas sim o gosto de os fazer. Igualmente necessários são os materiais de qualidade e o folhado, que é muito importante. Outro fator relevante para um bom pastel é o forno, pois a temperatura a que cozem é essencial. Luís era eletricista, por isso, era ele que ajustava o forno da mãe, até ter as melhores condições para saírem perfeitos.
 
Como na época das fábricas dos lanifícios, o negócio dos pastéis era todo caseiro, Luís recorda-se bem das inúmeras pessoas que entravam em sua casa para comprar pastéis, uma vez que as portas estavam constantemente abertas. Até ao dia de hoje, Luís Silva nunca mais encontrou um pastel como o da sua mãe: “Agora é tudo comercial, qualquer padaria faz, mas não é a mesma coisa”. O atual técnico da UBI fala num tom desanimado e acredita que a industrialização vai levar o negócio caseiro a desaparecer, mas está certo que nunca mais se vai consumir o pastel como antigamente.  


No Balcão-Bar, no centro da cidade, os pastéis de molho são uma constante presença. O dono, Luís Santos, faz questão de não deixar morrer a tradição. Apesar de o pastel sempre se ter vendido no café, foi claro que nos últimos anos deram mais ênfase ao produto:
“A tradição estava-se a perder. Começamos a puxar pela ideia de que o pastel de molho é uma
refeição e que pode ser comido deixando qualquer um satisfeito”.

Luís que trabalha no estabelecimento há 31 anos, começando por ser funcionário até comprar o espaço, lembra-se de em pequeno ir levar o almoço à sua mãe, que trabalhava na fábrica, e já estavam presentes os pasteis de molho para ela comer. “São histórias que ficam na memoria e o pastel é uma iguaria muito caraterística”, recorda. Uma curiosidade interessente era que em sua casa o pastel só se comia com chá. Luís contou como este passou a ser outra alternativa ao molho de açafrão, explicando; “o pastel de molho com chá passou a ser comido nos anos 20, a indústria fabril foi obrigada renovar-se e os donos das fábricas foram buscar engenheiros ingleses”.

Com a presença dos novos habitantes e os seus hábitos de beber chá, as pastelarias começaram a adaptar-se para poderem
conquistá-los e agrada-los. Assim se começou a comer o pastel com chá. O pastel era muito conhecido e consumido na altura
das fábricas. Hoje em dia é uma memória desse tempo que tende a resistir. Na generalidade, toda as pessoas que são da Covilhã
o conhecem e quem passa pelo Balcão-Bar passa a conhecer. Como comprova Luís “uns adoram e outros nem tanto muitas
vezes por causa do molho, que é tão característico”. 

Sentado ao lado de um grande cartaz promovendo o pastel de molho, Luís Santos, revelou em conversa qual o segredo para o pastel de molho. Para ele está na massa, mas também na sua divulgação, “se ele for bem divulgado e bem explicado, não só a sua tradição, mas em que consiste o pastel, torna-se muito engraçado”.  Para Luís Santos é muito importante manter a tradição e ele luta por isso, vai sempre divulgar o pastel de molho por onde passar. Já esteve ações de divulgação em Lisboa e nas feiras também está sempre presente. 


Pelas ruas da Covilhã ainda se encontra quem faz o pastel de molho caseiro. Numa tentativa de não deixar morrer aquilo que sempre foi uma indústria doméstica, Filomena Gouveia é a prova que se pode dar continuidade, como ela própria diz, ao “verdadeiro pastel de molho”. 
Começou a vende-os por necessidade, pois só os fazia para a família, amigos e vizinhas. Mas como todos lhe diziam que devia vender os seu pasteis porque eram muitos bons, aproveitou, já que precisava de dinheiro e começou a vendê-los.
Juntando assim, a paixão por fazer o pastel à divulgação do mesmo e ao sustento pessoal.

Nos dias de hoje já não faz as quantidades que fazia antigamente, só ocasionalmente quando lhe pedem os mais próximos. Como é uma tarefa muito trabalhosa e exige muito tempo, já não consegue fazê-los diariamente, porque Filomena tem um problema nos ossos.  Aprendeu a receita com uma senhora do tempo dos lanifícios, ainda era muito jovem, como recorda: “eu aprendi com aquela senhora muito idosa, e mantenho a linha”. Desde que os aprendeu a fazer que ganhou o gosto e até hoje vem vindo a aperfeiçoá-los à sua maneira, nunca deixando de fazer como eram na altura. Já teve que se atualizar aos tempos de hoje. Uma vez um cliente pediu-lhe se podia fazer um pastel de molho vegetariano. Filomena, muito reticente, experimentou e diz que até lhe saíram muito bem. O cliente adorou e já não quer outros. 


Os pastéis de Filomena já passaram por muitos sítios: “Já foram para onde se encontram os emigrantes e até para o
ex-Presidente da República, que dizia que eram os melhores pastéis que já tinha comido”. Para ela, a tradição tende a desaparecer,
porque as pessoas hoje querem é ganhar dinheiro e fazer as coisas rápido, acabando por se fazer de qualquer maneira.
Agora é tudo feito a correr “é preciso é saírem muitos, para ganhar dinheiro”, diz com um ar consternado, “e não tem o mesmo sabor”. 

Sobre o segredo para um bom pastel, Filomena responde com um sorriso e diz que é a qualidade, o tempo e a dedicação.
É preciso haver produtos genuínos e, a cima de tudo, é imperativo ter-se gosto na sua confeção, assim tem-se a certeza que sai
sempre bem. “Eu quero manter a qualidade e quero manter o pastel de molho como toda a vida se fez na Covilhã”, afirma,
achandopreciso não deixar morrer a tradição e haver mais pessoas que queiram aprender.  

Filomena sente-se triste por hoje em dia não haver a preocupação em reproduzir o pastel tal e qual como ele era feito antigamente:
“Muitas vezes usam produtos mais baratos e outras alternativas para ter lucro, mas acaba por se estragar uma coisa que é tão boa e é
só da nossa terra, que não há em mais lado nenhum”.  Uma memória do tempo em que a Covilhã tinha grandes indústrias de lanifícios e que
perdura até aos dias de hoje. Uns acreditam que já não é o mesmo pastel de antigamente, outros tentam recriá-lo. Sabe-se que nunca
mais se virá a ter o verdadeiro gosto da época, mas cada um tenta à sua maneira divulgar um produto tão único da região da Beira Interior,
e tentar que se recorde esse tempo dando apenas uma trinca no pastel de molho. 

Urbi@Orbi 2018