A diferença somos
nós que a criamos


Margarida Gonçalves 
Inês Salvador
Juelma Pereira
Paulo Casemiro

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O dia começa cedo. São 9h30 e o tempo está quente, o sol brilha, o nevoeiro vai-se dissipando. A Popota, a Camila e o Ernesto chegam uns após os outros com bastante distância temporal. Ao contrário do que se possa pensar, a Popota, a Camila e o Ernesto não são pessoas, são os nomes carinhosamente dados pela a população da APPACDM da Covilhã às carrinhas e ao autocarro de transporte, respetivamente. À medida que vão chegado, os utentes da APPACDM da Covilhã, ou os “meninos” como atenciosamente os tratam, vão-se reunindo na sala de convívio. Esta tem como pano de fundo um ambiente gritantemente animado. Ouvem-se músicas, canta-se, conversa-se, soltam-se gargalhadas e respira-se felicidade.

 O tempo passa. São 10 horas. As atividades começam. Cada um se desloca para aquela em que está inscrito. A Fabiana, ou “Fabi” como a chamam, tem hoje atelier de têxteis. Como a APPACDM está a preparar a sua festa de Natal, nesta aula os utentes juntamente com a “Titi”, Lídia Andrade, a responsável que potencia as suas capacidades para a costura, estão a fazer enfeites de Natal: porta-chaves, almofadas, pegas, bolsas para o telemóvel, para que tudo possa ser vendido na festa de Natal.

Fabiana tem 30 anos e esta é uma das suas áreas preferidas. Costura almofadas como ninguém. Sabe todo o tipo de pontos. E não só produz coisas para si, como o faz para todos aqueles que são totalmente dependentes e que se alegram com a generosidade dela e de outros que pertencem a esta oficina. Lídia Andrade diz que “eles fazem muito do que gostam e, sem dar conta disso, desenvolvem as suas capacidades. E o facto de fazerem coisas para os outros meninos é um sinal de grande partilha e de profunda amizade entre eles”.  

Como todos os que aqui passam os dias, a Fabiana diz que “gosta muito de vir para a APPACDM” pois está diariamente com amigos, a fazer o que gosta. De realçar que no âmbito do trabalho têxtil a APPACDM tem uma parceria com o Museu do Queijo onde todas as peças, feitas de burel, estão à venda. Para além desta parceria, também já são muitas as pessoas que fazem encomendas aos utentes: “Fazemos desde brindes de casamentos, de batizados, porta-chaves, saquinhos da primeira roupinha dos bebes, ou babetes” diz Lídia Andrade. Ela acrescenta ainda, relativamente a Fabiana, que já tem encomendas no estrangeiro! Para além disso, a “Fabi” tem um afilhado! O Alfredo! É um passarito que apanhou na rua e que se tornou a mascote da instituição.


O lado público desta causa

Estima-se que cerca de 15% da população mundial tenha algum tipo de deficiência, quer seja motora, intelectual, visual, auditiva, entre tantas outras, segundo a Organização Mundial da Saúde. Em Portugal, os censos de 2001 apontaram para um total de cerca 600 mil residentes com algum tipo de deficiência, dos quais cerca de 70 mil dizem respeito a deficiência mental.

Steve de Sá é outro dos muitos “meninos” que dão vida à casa. Tem 27 anos e disse-nos, tímido, mas orgulhosamente que toda a gente lhe diz que quando não está “é uma tristeza”. Naquele dia era para ter aula de desporto com o professor João Neto, no entanto, como este não se encontrava presente, Steve esteve largos minutos à conversa connosco: falou-nos de si, do que faz na instituição, do que gostava de fazer mais, dos prémios que já recebeu, e da festa de Natal. Para além disso, juntamente com Nuno Pereira, o “relações públicas cá do sítio” fez-nos uma visita guiada por todos os cantos e recantos da instituição, o seu segundo lar.

Steve é um dos rapazes do desporto - faz atletismo, natação, futsal, basquetebol, e agora também equitação e surf. Já foi à Bélgica, a Andorra, a Cascais e também aos Jogos Regionais Cova da Beira representar a APPACDM e Portugal. No total tem mais de 80 medalhas de todas as provas em que participou. “Sou um atleta profissional: sou muito rápido no atletismo e na natação também, embora tenha algumas falhas nos 100 metros” diz o Steve. Acrescenta ainda que “as provas são importantes para obter melhores resultados e também para ganhar uma medalha”. O Steve é uma espécie de estrela que “invade” todos os dias a instituição.

Neste âmbito desportivo é evidente uma grande aposta da Associação. “Desde que abrimos portas, há 11 anos atrás, a 3 de dezembro de 2007, que fazemos uma aposta muito grande no desporto. Participamos bastante, vamos a campeonatos mundiais, a europeus, a special olympics. Porque sabemos, e temos o retorno, de que a prática desportiva tem resultados quase imediatos, principalmente ao nível da autoestima dos nossos utentes. E também estamos a mostrar à sociedade aquilo que eles são capazes de fazer” diz-nos António Marques, presidente da APPACDM da Covilhã.

Steve diz que a instituição e as pessoas que dela fazem parte são “umas fofas, umas queridas” e tem como desejo ajudar a enfermeira no seu trabalho, bem como ajudar a compor o jardim, ou coadjuvar na copa: “Gosto de ajudar as pessoas aqui da APPACDM”. Por sua vez, o Nuno Pereira, que também é atleta, faz de tudo um pouco e ajuda no que pode, tendo como principal papel o de rececionista. O Nuno transmite que “a instituição se faz de muito amor, carinho e ternura”. Tanto o Steve como o Nuno fazem parte do Bombarte, o grupo de bombos da APPACDM.



A Fabiana e o Steve são casos que demonstram algumas das principais atividades que se fazem na APPACDM. Cada utente tem a possibilidade de ‘trabalhar’ as áreas de que mais gosta, acabando por, de forma inconsciente, desenvolver muito as suas potencialidades. Têxteis, Desporto, Musicoterapia (onde cantam, dançam e tocam instrumentos), Reiki - onde se trabalham os chacras de forma a se promover uma maior capacidade de concentração, mas também de forma a lhes dar uma grande dose de divertimento - Psicologia, Informática, Atividades da vida diária, Relaxamento, Artes Plásticas, são algumas das muitas atividades que ali se desenvolvem.

António Marques explica que estas atividades são realizadas apenas por alguns dos utentes institucionalizados e não por todos. Tal situação acontece porque a instituição tem quatro valências: o Centro de Atividades Ocupacionais (CAO) onde os utentes estão durante o dia, num total de 60 pessoas, sendo precisamente lá que decorrem as várias atividades; o Lar Residencial onde estão sempre acompanhados por auxiliares, e onde existem pessoas que não têm qualquer família, estão totalmente a encargo da instituição, num total de 24 pessoas, estando lotado; uma Residência Autónoma que tem capacidade para 5 pessoas, onde estão 4 atualmente; uma Área de Formação Profissional com um curso de Carpintaria com 5 jovens que não são utentes da APPACDM, há cerca de 2 anos, e que tentam sempre ao máximo colocar no mercado de trabalho.

Estas capacidades são máximas, as que a lei permite. “É nossa intenção alargar a área de formação a um curso de Jardinagem”, diz o presidente, que afirmou ainda que a instituição sempre teve a preocupação de “ter uma equipa técnica multidisciplinar que pudesse intervir de uma forma correta e tentar encontrar as respostas adequadas a todas as situações”. Pensa ainda que conseguiu garantir essa intervenção, uma vez que dispõe de “um terapeuta da fala a tempo inteiro, dois psicólogos clínicos, uma terapeuta ocupacional, uma técnica de psicomotricidade, um técnico de desporto, uma enfermeira e uma médica”.


Abrir portas e integrar

 A APPACDM é, bem como todas as Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS), fruto de um esforço de pais e famílias que cuidam de pessoas com deficiência. Porém “não é um depósito de pessoas, é uma casa de portas abertas” esclarece o António Marques. No dicionário a palavra “deficiente” é descrita como sendo “uma falha, uma anomalia”. No entanto, é importante que fique claro que estas pessoas “são pessoas muito especiais”. Boa parte são muito mais felizes do que quem está a ler esta reportagem.

Numa apresentação feita no hotel Puralã a propósito da edição deste ano de “Conversas sem diferença”, o professor de desporto adaptado do atleta João Farinha, Eduardo Dinis, referiu que mesmo nos dias de hoje “ainda há pessoas que mudam de passeio ao ver pessoas com deficiência”, reiterando que tal situação só pode ser alterada a partir do momento em que se olhe para elas sem medo, sem estranheza, mas sim com igualdade e normalidade.   

A este respeito António Marques pensa que “o paradigma da deficiência e o modo como se encara a deficiência intelectual tem vindo a mudar ao longo do tempo, e ainda bem. Hoje, o cidadão com deficiência intelectual é muito mais aceite, e visto com outros olhos em comparação a alguns anos atrás. As mentalidades são o mais difícil de mudar, como nós sabemos, basta olhar para a História. Estas instituições têm um papel determinante nessa mudança, em termos públicos. E a única forma de o fazerem é abrir as suas portas, dizer que eles são capazes, que são pessoas como nós, com as suas capacidades e circunstâncias.”

É, pois, preciso integrar. Nem sempre é fácil. Há jovens mais dependentes do que outros, há jovens mais sociáveis do que outros, mas é vital que cada um de nós e as instituições em que estão inseridos os valorizem, os amem e os façam sentir iguais a qualquer um de nós. É fundamental que se tenha consciência que a diferença existe, mas que mesmo diferentes as pessoas são iguais, têm o mesmo valor e a sociedade deve-lhes o mesmo respeito.


 Relativamente às ajudas que estas instituições recebem e à forma como são protegidas pela lei verifica-se que o Estado não tem em sua dependência direta nenhuma instituição. As IPSS são todas de iniciativa privado, embora o Estado lhes dê fôlego para que elas possam sobreviver. “O apoio que o Estado dá está bastante legislado e protocolado com todas elas, é um apoio através da Segurança Social, um apoio financeiro mensal. E seria muito difícil uma IPSS como a APPACDM desenvolver a sua atividade sem essa ajuda, porque as suas despesas são muitas.

Nós temos na Covilhã 45 colaboradores, e as receitas que temos são aquilo que temos contratualizado com a Segurança Social, e as mensalidades que as famílias dos utentes pagam e que são calculadas de acordo com uma tabela da Segurança Social. O Estado, através da Segurança Social tem aqui um papel muito importante e decisivo” avança o presidente desta instituição.

 No fundo, “o propósito e a missão da APPACDM é proporcionar uma resposta técnica especializada de qualidade à população com deficiência intelectual do concelho da Covilhã”. Uma coisa incrível que acontece na APPACDM da Covilhã é que não se fala dos problemas, das incapacidades ou das dificuldades. Fala-se sim das conquistas e das dificuldades ultrapassadas. Criam-se amizades. Fazem-se pessoas felizes. Olha-se para os outros sem preconceitos ou juízos de valor. “No fundo, somos todos iguais só com alguma diferença”.

Créditos
Fotos: APPACDM e Unsplash

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