Voltar à Página da edicao n. 422 de 2008-02-26
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> <strong>José Geraldes</strong><br />

Verdade e conveniências

> José Geraldes

O mundo em que vivemos é, no mínimo, incoerente. Em Portugal, e a nível internacional, palpamos diariamente tal incoerência nos modos de vida e nos comportamentos. E nas atitudes que definem valores.
O que, hoje se considera verdade, amanhã assume garantias de mentira. O relativismo reina entre as pessoas, os grupos e os políticos.
A hipocrisia mina as relações sociais. A honra da palavra dada desapareceu ingloriamente. Não se sabe em quem acreditar. A verdade depende das circunstâncias, das conveniências e dos interesses pessoais.
A tolerância que devia estar no coração da democracia, só existe se favorecer determinadas opiniões. E vale tudo mesmo truncar citações para base de pontos de vista discutíveis. Minorias arrogam-se direitos que a maioria reprova, com base em manipulações.
Veja-se o que aconteceu com o convite a Bento XVI da Universidade La Sapienza (A Sabedoria) em Roma, para a abertura do ano académico. 67 professores de física, numa faculdade com 600 docentes, e, num conjunto de milhares, escreveram uma carta ao Reitor a pedir o cancelamento do convite por o considerarem “incongruente” com a laicidade da universidade que, aliás, tinha sido fundada por um papa. Um grupo restrito de estudantes aderiu à carta destes professores e ameaçava com manifestações. Em face deste cenário, o Vaticano cancelou a visita.
Qual o argumento destes professores? Um discurso de Bento XVI enquanto cardeal em Parma, em 1990, em que, citando o cientista Paul K. Feyerabend, a propósito do caso de Galileu, quis mostrar que a ciência estava a perder a confiança em si própria e que a fé não cresce a partir do ressentimento e da recusa da modernidade.
O professor Giorgio Israel, catedrático de matemática da mesma universidade, com ironia, respondeu aos seus colegas. “É melhor uma pessoa documentar-se e raciocinar em vez de, com tanta frequência, retirar trechos do contexto, o que facilmente conduz a equívocos. Os autores do apelo contra o Papa, fundam-se numa citação de Paul K. Feyberand e teriam feito melhor se tivesse lido o discurso do então cardeal Ratzinger porque assim teriam compreendido que este Papa, de facto, não atacava a ciência nem a razão”.
O discurso de Bento XVI foi lido por um professor longamente aplaudido e constitui uma peça de antologia sobre a procura da verdade. Claro que os professores contestatários não gostariam de ouvir do Papa “que o perigo do mundo ocidental é que o homem, obcecado pela grandeza do seu saber e do seu poder, esqueça o problema da verdade. E isto significa que a razão, no fim do dia, acabará por se vergar às pressões dos interesses e utilitarismo, perdendo a capacidade de reconhecer a verdade como critério único”. E numa lição de humildade, Bento XVI acentua que um Papa não vem à universidade “impor a fé de cima, pois esta é antes de mais um dom da liberdade”. Liberdade que os 67 professores não respeitaram para o Papa ir à La Sapienza.
Mais inteligente e, com estatura de honestidade intelectual exemplar, foi o alemão Jurgen Habermas, o “ateu metódico”, que, em 2004, manteve com o então cardeal Ratzinger, um debate interessante e útil. Habermas escreve que o cristianismo é o fundamento último da liberdade, dos direitos humanos e da civilização ocidental. Assim: “Não dispomos de alternativas. Continuamos a alimentarmo-nos desta fonte. Tudo o resto é pós-moderno.”
Habermas cita, a propósito, o filósofo político E. W. Bockenforde: “ A Igreja não deve intervir directamente no domínio do Estado, na legislação ou nos poderes executivo e judicial. Mas é preciso lembrar que, previamente, à ética de facto preconizada pelo Estado para os cidadãos, existe um ethos pré-político. O Estado secularizado deve submeter-se às normas que o precedem. (…) A Igreja tem o direito e o dever de se referir às normas fundamentais que decorrem da própria essência do ser humano.”
A honestidade intelectual é atributo básico para um diálogo coerente. Não segundo as conveniências nem com preconceitos de algibeira. Quem tem medo da verdade?


Data de publicação: 2008-02-26 00:00:00
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