Voltar à Página da edicao n. 374 de 2007-04-03
Jornal Online da UBI, da Covilhã, da Região e do Resto
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> <strong>João Carlos Correia</strong><br />

As Fronteiras nas Novas Humanidades

> João Carlos Correia

No dossier sobre David Lynch, o realizador americano, elaborado pela Revista Actual do Expresso este cita explicitamente, entre as suas influências Kafka, Kubrick, James Joyce, Bacon: ou sejam dois escritores, um realizador de cinema e um pintor. Apesar da insistência mcluhaniana (ou de alguns McLuhanianos) na crítica da cultura alfabetizada por oposição a uma cultura centrada na imagem, esta não necessita de um advogado e de um promotor porque, na verdade, nunca teve um estatuto menor. A maior parte dos nossos sentidos interfere mais naturalmente» na experiência e na elaboração da cognição do que o alfabeto. Vendo melhor as coisas, a cultura alfabetizada talvez mais não seja do que uma cultura centrada na visão – leitura - e na audição – escuta da fala - como auxiliares da razão em detrimento do tacto mais “físico” e mais próximo do corpo: a dança e a música talvez sejam mais óbvias na superação da Galáxia Gutenberg do que a imagem.
Qualquer acto de cultura se baseia numa violência feita à natureza, numa ruptura em relação ao instinto. A cultura “alfabetizada”, centrada no alfabeto e na letra talvez seja particularmente violenta pois é a criação de um código artificial: um magnífico software que serve para construir conceitos. Basta pensar no processo de aprendizagem das crianças quer da fala quer da escrita para percebermos as dificuldades da criação de um pensamento simbólico construído de acordo com os nossos cânones de pensamento racional. Benjamin, McLuhan e Baudrillard tinham razão quando afirmavam a importância das tecnologias centradas na imagem: primeiro do cinema, depois da televisão, finalmente das imagens digitais. Porém, enquanto amador das imagens (desde Giffrith e Eisenstein a Wells, para falar apenas dos «grandes gramáticos da imagem») interrogo-me muitas vezes sobre a veracidade das palavras de Barthes, quando põe em questão a autonomia de outros códigos que não sejam o da linguagem humana. Mesmo conhecendo a linguagem dos planos e a forma excepcional como ela foi teorizada até ter uma autonomia artística e estética indesmentível, fico na dúvida se essa linguagem não transpõe para uma gramática específica uma certa forma de criar que é, também, produto de um cruzamento da escrita e do Racionalismo. Muitos dos grandes realizadores de cinema e muitos dos grandes artistas plásticos pertencem ao mesmo universo cultural dos grandes escritores. Há imagens mais cerebrais e postas ao serviço dos conceitos. Há imagens mais intuitivas e que expressam sobretudo, emoções ou prazeres. Lynch dixit.
Como não sou um teórico desta área, não quero tirar conclusões que são sem dúvida polémicas e provisórios. Vivemos um universo onde a imagem ganha uma posição fascinante. A memória colectiva deixa de ser a mesma com o digital, as mega-bases de dados e o YouTube. A imagem está disponível fora dos arquivos da RTP ou na Cinemateca Nacional. Hoje todos podem ter a obra completa de Visconti ou João César Monteiro ou os episódios do Doctor House em casa. O amante de Jazz ou de Música clássica pode assistir no YouTube aos memoráveis encontros entre Miles Davis e Gill Evans ou à despedida de Kiri Te Kanawa. Os textos para serem publicados têm de ser atraentes, bonitos e apelativos e por isso ser, também, pensados como uma imagem. Os suplementos de Cultura são cada vez mais atraentes sob o ponto de vista do grafismo. Os cursos da Faculdade de Artes e Letras conhecem uma época em que existe uma indústria na área da Comunicação e da Cultura em plena transformação e, até, se observarmos do ponto de vista do médio prazo, em expansão. A expansão dos símbolos e a democratização da imagem fazem parte do nosso mundo. Porém, em nome de uma certo pedagogês, há o risco de subestimar palavras e os textos no ensino e na definição de cultura. Ora todos os dogmatismos correm um risco: deitar fora o bebé com a água do banho. Quando se fala de uma especificidade do cinema português ou do cinema americano remete-se para um universo cultural onde convivem palavras e imagens. Um universo que inclui na sua tradição a Grécia, Roma e a Renascença. É mais fácil, argumentam, mostrar: a imagem vale mil palavras. Mas, na construção de uma ciência, a imagem, só por si, cega. Os melhores produtores de cinema, os melhor webdesigners terão a auxiliá-los – mesmo que eles não saibam - uma cultura que não dispensa o texto, mesmo que ele esteja online. Em suma, não se caia em dicotomias demasiado rígidas. Os amantes das letras e do livro, os professores, os alunos e os pensadores não podem imaginar que o pensamento e a cultura terminam com o apogeu do romance clássico. Mas os que amam as imagens não suponham que a cultura começou com a imagem reprodutível. O Departamento a que pertenço – Ciências da Comunicação – é um produto desta consciência que as Universidades tomaram da pluralidade das formas de expressão. Daí a importância do Cinema e do Design. Daí a importância crescente que estes Departamentos têm.
Por vezes, alguns resumem a importância dos saberes à empregabilidade imediata. Num país pequeno, isto tem sem dúvida, muita importância. Tem importância para todos os envolvidos e nenhum académico de hoje se esquece desta componente. Mas as Universidades não podem reduzir a importância dos saberes à empregabilidade. Têm de acrescentar aos critérios que desenham a capacidade de captar o espírito dos tempos, o estado civilizacional de uma sociedade. É por isso que os Americanos e os Ingleses – modelo de todos os pragmatismos – valorizam as Humanidades, a Filosofia, as Ciências Sociais, o Grego e o Latim, a Comunicação e as Artes. Sem vergonha nem preconceito.


Data de publicação: 2007-04-03 00:00:00
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