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O vernáculo e a ciência em Portugal

> António Fidalgo

O Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior tornou-se o expoente máximo da opção governativa de apostar na língua inglesa como meio de fomentar o desenvolvimento científico e tecnológico em Portugal. Documentos assinados entre o Estado Português e instituições particulares estrangeiras têm unicamente uma versão em inglês, ou pelo menos é essa a única versão oferecida pelo MCTES na sua página da Internet. Os recentes acordos com universidades americanas são o caso mais próximo e paradigmático. Quem quiser conhecer o conteúdo desses acordos terá de dominar a língua inglesa.

Mas a subserviência do MCTES à língua inglesa não é de agora. De há alguns anos a esta parte que investigação em Portugal só é financiada pelo Estado se os projectos aos concursos da FCT–Fundação para a Ciência e Tecnologia forem submetidos em inglês, seja qual for a área científica. Leiam-se as condições dos concursos na página web da FCT. Os artigos publicados no estrangeiro têm uma ponderação maior na avaliação da actividade científica. O que induz à iniciativa esdrúxula de um centro de investigação português ter uma revista em inglês, publicada em Inglaterra, chamada Portuguese Journal of Social Sciences, financiada pela FCT.

Sendo consequente com estes princípios que norteiam a política científica governamental depreende-se que existe a tendência para que toda a ciência feita em Portugal seja feita de preferência em inglês. Embora não sendo de somenos relevo, deixemos de lado a possível inconstitucionalidade de tais medidas e práticas do MCTES e da FCT, já que vão contra uma das tarefas fundamentais do Estado, consignadas no artigo 9º da Constituição, alínea f): “Assegurar o ensino e a valorização permanente, defender o uso e promover a difusão internacional da língua portuguesa.” Fiquemo-nos apenas pela reflexão da ligação da ciência ao vernáculo e do fomento de uma cultura científica na sociedade portuguesa.

É verdade que Espinosa teve de publicar em latim para poder difundir a sua obra. Era essa a língua franca nos meios científicos do seu tempo. Mas justamente nessa altura era em latim que em Coimbra se ensinava, escrevia e publicava, e tal não impediu que Portugal ficasse à margem da revolução científica moderna. Galileu escreveu as suas obras em italiano e Descartes em francês o Discurso do Método. A ciência moderna afirmava-se nos vernáculos que ganhavam então importância crucial, religiosa, política e científica.

A língua franca de uma ciência é algo extremamente relativo. Até à II Guerra Mundial as línguas principais de difusão científica foram o francês e o alemão. Se o anglo-americano é hoje a segunda língua de longe mais falada, de facto predominante na ciência e em múltiplas actividades, isso não impede que sofra o desafio crescente de outras línguas, nomeadamente o chinês e o espanhol. George Steiner no prefácio à segunda edição (1992) do seu opus magnum, After Babel, revê a ideia em voga aquando da primeira edição (1975) de que o avanço do inglês era óbvio e possivelmente irreversível. O espanhol não só é uma língua com mais falantes nativos que o inglês, respectivamente 390 e 354 milhões, como invade hoje os próprios Estados Unidos da América. O inglês como língua mãe é a quarta língua, depois do chinês, hindi e espanhol. E o português, se não se considerar o árabe, espartilhado em ramos incompreensíveis entre si, vem logo a seguir ao inglês com 210 milhões de falantes nativos. Porquê abdicar da língua própria, quando tão falada e em tantos continentes, com o New York Times a dedicar-lhe recentemente (2006/10/23) um artigo de página sobre a sua relevância “At Long Last, a Neglected Language Is Put on a Pedestal”?
Epistemologicamente não se julgue ser uma questão neutra as línguas em que as ciências se produzem e se divulgam. Antes do mais há a pluralidade e a diversidade das ciências. Investigar nos campos da História, das Filologias, Direito, Ciências Sociais em Portugal e publicar em inglês só à custa de um empobrecimento da própria investigação científica produzida. Com efeito, uma língua natural como o inglês tem por trás uma história de séculos, uma literatura, uma cultura, muito específicas tal como as outras línguas naturais. Ora os falantes nativos têm acesso ao substrato de uma língua de uma forma que não têm os que a falam como segunda língua. O inglês enquanto língua franca não é o inglês das literaturas inglesa e americana, antes um inglês de superfície, onde as palavras e as expressões são despidas da sua profundidade histórica, do seu sentido múltiplo. É um inglês à Forrest Gump, de uma dimensão simplista e por vezes idiota. A síndrome de Asperger, de que essa conhecida personagem fílmica sofre, encontra o seu espelho na forma como o inglês é falado pela grande maioria dos que o falam como segunda língua: repetem os mesmos termos e expressões, ignoram segundos, terceiros e ulteriores sentidos, adquirem tiques estranhos, e é-lhes inacessível o humor e a ironia.

Portugal já teve uma época em que as suas elites liam e escreviam em francês. A Geração de 70 foi educada no francês, tal como em francês foram formados os positivistas lusos do final da monarquia e do princípio da república. Dessa formação científica que passou para o povo? Pouco efectivamente. Não se repita agora o erro com o inglês. A cultura científica da sociedade portuguesa tem de ser feita em português, porque só pode ser feita em português.


Data de publicação: 2006-11-07 00:00:31
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