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> <strong>José Geraldes</strong><br />

O que Bento XVI quis dizer

De futuro, a Igreja deve estar atenta à mediação das suas palavras

> José Geraldes

Uma citação tirada do seu contexto incendeia o mundo árabe e retira todo o sentido que lhe queria dar o seu autor. E isto por culpa de profissionais de jornalismo que não fizeram o trabalho que deviam: ler na íntegra o discurso de Bento XVI, na Universidade de Ratisbona, na Alemanha, no passado dia 12.
Os jornalistas não só não leram como tresleram, limitando-se a citar uma frase, esquecendo o essencial contido no discurso.
Ora Bento XVI não toma como fio condutor do seu discurso qualquer reflexão sobre o islão mas centra as suas palavras na relação entre a razão e fé e a influência da cultura grega no cristianismo.
O discurso é muito denso e dirigido a uma plateia de académicos. Aliás, Bento XVI, refere precisamente “que continua a ser necessário e razoável colocar a questão de Deus através do uso da razão e fazê-lo no contexto da tradição cristã.”
Depois o Papa cita um diálogo do imperador bizantino Manuel II Paleólogo, (séc. V) com um persa culto sobre o cristianismo e o islão, referindo o tema da fé e da razão.
É neste contexto que surge a citação relacionada com a questão da relação entre religião e violência. Eis a citação: “Mostra-me então o que Maomé trouxe de novo. Não encontrarás senão coisas demoníacas e desumanas, tal como o mandamento de defender pela espada a fé que ele pregava.”
E mais à frente Bento XVI acentua: “A frase decisiva contra a conversão pela violência é: “Agir de modo irracional e contrário é natureza de Deus”. E depois sublinha: “Não agir racionalmente, não agir com o logos, é contrário à natureza de Deus – disse Manuel II (...) é a este grande logos, a esta amplitude da razão que convidamos os nossos parceiros no diálogo de culturas”.
Aqui está a parte mais importante do discurso de Bento XVI. Na audiência do domingo passado, o Papa o disse de novo, lamentando a reacção dos muçulmanos: “Trata-se de uma citação de um texto medieval, que não exprime de forma alguma o meu pensamento pessoal (...) Espero que esta explicação contribua para apaziguar os espíritos e clarificar o sentido verdadeiro do meu discurso, que não passa de um convite ao diálogo franco e sincero com um grande respeito recíproco”.
Aliás, Bento XVI não só fez a citação referida mas citou passagem de várias outras obras.
Este discurso, como sublinha o comunicado do Vaticano sobre a interpretação das palavras de Bento XVI, vem na sequência das intervenções que fez na Baviera ao advertir o Ocidente para que “se evite o desprezo de Deus e o cinismo que considera a irrisão do sagrado um direito da liberdade”.
Na Universidade de Ratisbona, Bento XVI propôs o “diálogo das culturas” para precisamente evitar a violência. Trata-se de dar importância ao diálogo entre todas as religiões. E de não justificar a violência em nome da religião.
A citação foi aproveitada politicamente pelos fundamentalistas islâmicos com os fins que se conhecem, de desestabilização e de ódio a tudo que seja ocidental.
George Carey, ex-arcebispo de Cantuário – líder espiritual dos anglicanos - com justeza, centrou a questão: “Os muçulmanos como os cristãos devem aprender a dialogar sem gritar histericamente (...) Devemos não só separar a religião da violência mas também não de dar qualquer legitimidade religiosa à violência”.
A procura dos “sound-bite” ou seja frase que impressiona, traíu o pensamento do Papa. De futuro, a Igreja deve estar atenta à mediação das suas palavras.

> lsoeiro @ hotmail . com em 2006-09-27 09:37:08
É sempre com muito prazer que leio os artigos de opinião de José Geraldes. Muitas são as vezes em que concordo com as suas opiniões. Contudo, sobre o assunto que aqui parece ser o seu - «O que Bento XVI quis dizer» -, creio ser oportuno o esclarecimento de alguns pontos. Em primeiro lugar (desconfiando, porém, e desconfiando sempre, da presunção de uma qualquer "infalibilidade jornalística"), não serão certamente os jornalistas os responsáveis directos pelos equívocos e pelas reacções a que as declarações de Bento XVI deram origem. Indesejáveis reacções de violência, como é do conhecimento do público. Não se dê, pois, aqui razão ao dito: «Se a mensagem não é boa, mate-se o mensageiro»! José Geraldes entende que «Bento XVI não toma como fio condutor do seu discurso qualquer reflexão sobre o Islão mas centra as suas palavras na relação entre a razão e fé e a influência da cultura grega no cristianismo.» Seja. Pergunta-se agora: se, como o pretende Bento XVI, a «questão de Deus, no contexto da tradição cristã», deve (ou já só pode?) ser posta «através do uso da razão», será o Deus cristão um Deus apenas da razão? Será da essência da fé do cristão a crença absoluta na superioridade da razão (justamente sobre a fé)? Será o cristianismo uma religião da razão e o próprio Deus cristão a figura absoluta do exercício da razão? Será o Deus cristão um Deus a quem os seus crentes já só podem defender exclusivamente mediante o uso da razão? A ser assim, então o cristianismo ter-se-ia tornado numa uma pura ciência (fé na razão), aparecendo a própria fé cristã como uma relíquia violenta e atávica de um passado irracional. Contudo, que o cristianismo, mergulhado como está numa crise de prática da sua própria fé, já só se possa defender pela razão, é perigoso sobretudo para a fé cristã e para a sobrevivência dos próprios cristãos. Com efeito, «o mandamento de defender pela espada a fé que ele pregava», frase de Manuel II Paleólogo sobre o carácter específico do credo de Maomé, frase que Bento XVI aqui cita, justamente, com o fim de ilustrar o carácter violento (irracional) do Islão, esse mandamento, que essa frase cita, não pode aqui (no discurso de Bento XVI) ser senão repudiado. Por conseguinte, ao contrário do que parece ser a intenção que José Geraldes atribui às palavras proferidas por Bento XVI, essa citação deve, precisamente no contexto em que é feita, ser justamente tomada e entendida como uma condenação explícita (feita, é certo, entre as linhas) da violência do Islão. Com efeito, ela corresponde quer ao que Bento XVI efectivamente disse quer ao que «quis dizer». No fundo, ela reflecte apenas o que Bento XVI, em privado, efectivamente pensa do Islão. Na verdade, pode, aliás, dizer-se que caso Bento XVI assim não pensasse é que seria de estranhar! Convém, no entanto, sublinhar aquele que, entre todos, parece ser o aspecto essencial de toda a polémica que as suas palavras suscitaram: que, enquanto Papa, Bento XVI não possa dizer expressamente em público o que "aparentemente disse" mas "não quis dizer", isso é uma questão que deveria merecer uma maior atenção - atenção de todos os cristãos em geral, mas, por maioria de razão, atenção dos jornalistas cristãos em particular. Porquê? Justamente porque um tal mandamento subsume tudo o que é contrário ao Deus racional do cristianismo: a Razão e a Paz. Contudo, interpretando, desapaixonadamente, o sentido das palavras de Bento XVI, talvez se devesse aqui sobretudo perguntar: até onde pode a prudência ocultar a cobardia?


Data de publicação: 2006-09-26 00:00:12
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