José Geraldes
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A sociedade civil
e a degradação de programas das TV's
No espaço de 15
dias, tomam corpo três iniciativas em ordem ao boicote
dos "reality shows" das televisões privadas
portuguesas.
A primeira partiu de um jurista de Lisboa, através
da Internet, com apelos a políticos e figuras públicas
colaboradores habituais da SIC e TVI a não participar,
durante o mês de Junho, em qualquer programa das
estações. "Quarentena para uma televisão
mais sã" é o mote da iniciativa. "Se
acham que há programas que ultrapassam os limites,
então que sejam coerentes com as opiniões
que têm expressado e não apareçam
nessas estações" - sublinha o jurista.
A segunda iniciativa, também via Internet, diz
respeito à publicidade de produtos nas emissões,
sobretudo do Bar da TV. Os anunciantes são convidados
a não patrocinar este programa e os telespectadores
a não comprar os produtos anunciados.
A terceira iniciativa, sob a forma de abaixo-assinado,
visa igualmente a publicidade e, claro está, o
conteúdo do programa. Diz o abaixo-assinado: "Não
é possível continuar a assistir, de forma
porventura indignada mas improcedente, a uma escalada
de programas de baixa qualidade que basicamente com fins
comerciais de captação de audiências,
apelam aos instintos mais elementares e alienantes".
O abaixo-assinado tem por objectivo a "melhoria da
televisão em Portugal" e assume uma forma
abrangente. Não se trata de uma iniciativa individual,
mas de uma série de entidades de prestígio
tais como o Centro Nacional de Cultura, Fórum Abel
Varzim, Associação de Telespectadores Ac
Média, Associação Portuguesa de Escritores,
Federação Portuguesa de Associações
e Sociedade Científicas e a Sociedade Nacional
de Belas-Artes.
A coincidência destas três iniciativas demonstra
que a consciência crítica não está
adormecida entre nós. E importa valorizá-la
cada vez mais, dado o poder de influência do fenómeno
televisivo.
É corrente o argumento de quem não desejar
ver tais programas, mude de canal. E a protecção
dos menores onde fica? E há o direito de impor
o que se quer para ganhar audiências?
Nos anos 60 e 70, sonhou-se com uma televisão educadora
do povo. Hoje, tal desejo esmoronou-se. A televisão
transformou-se num poder. Um director de programas da
SIC não chegou a dizer que a sua estação
podia "vender" um presidente como um sabonete,
em eleições? E viu-se o papel de uma estação
concorrente, a TVI, no acto eleitoral para a presidência
de um clube de futebol como o Benfica. Daí a observação
do sábio Pierre Bourdieu, professor no Colégio
de França, num livrinho de capas vermelhos publicado
em Paris e traduzido para português em capas azuis:
"A televisão faz correr um não menor
risco à vida política e à democracia".
Uma decisão de Governo exige estudo, ponderação,
tempo de aprofundamento e não pode reduzir-se a
21 segundos e meios de mensagem no ecrã, como demonstram
os técnicos do "marketing".
A televisão não pode substituir-se ao Parlamento
e à representatividade dos partidos políticos.
A isto acresce o facto do mediatismo televisivo ser fragmentário
por natureza. Claro que a imagem emociona, e os telejornais
transformam-se num mosaico de acontecimentos sem reflexão.
Mas reforçam igualmente os estatutos dos líderes.
Não é por acaso que as conferências
de imprensa e comícios apontem sempre para a hora
do telejornal.
Gionvanni Sartoni, em livro porventura um pouco polémico
(e trata-se de um intelectual de esquerda), observa que
a televisão "está a transformar o Homo
Sapiens, produto da cultura escrita em Homo Videns, no
qual a palavra é destronada pela imagem".
Aliás, a chegada para breve da televisão
digital vai fazer de cada telespectador o autor dos seus
próprios programas. Esperemos qual seja a adesão
do público e a influência nas suas decisões.
Uma evidência salta aos olhos. A televisão
não pode transformar-se num mundo selvagem, sem
normas. E não se trata de impor uma censura já
em projecto, a um certo nível de dirigentes, sonhada
por Karl Popper, mas da assunção de responsabilidades
dos operadores televisivos. A censura só produz
efeitos contrários e não se justifica. Mas,
partir do princípio que se deve dar ao povo o que
ele quer, é entrar num terreno minado e altamente
perigoso.
Em termos morais, a televisão apresenta-se como
um bem. Tudo depende do uso que se faça do seu
poder. Em qualquer dos casos, nunca para denegrir a dignidade
da pessoa humana.
Apesar de tudo, os programas ditos "reality-shows"
tiveram o mérito de despertar o espírito
crítico adormecido. É caso para parafrasear
Camões: "Acorda, povo português, para
que a televisão não destrua a tua alma".
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